Manuel Igreja

Manuel Igreja

Enganchar

- Enganchar, enganchar, no dia em que te vir hei dê-te mandar rezar. Reza!
Era assim um jogo de Páscoa nos meus anos de menino e moço de aldeia situada no planalto junto do Monte de S. Domingos de Queimada estrema entre a Beiras e o Alto Douro Vinhateiro.

Duas pessoas geralmente espigadotes, sem olhar a género, combinavam enganchar.
- Queres enganchar comigo? – Começava assim.
Lançado o repto, mais que convite, ambos entrelaçavam os dedos mindinhos e polegares, rodavam várias vezes as mãos, e logo o mais lesto:

- Reza. Sempre que te vir vou-te mandar rezar.
Posto isto, durante a Semana Santa, o primeiro a topar o outro de imediato bradava:
- Reza!

A combinação, sob a forma de regra do jogo, mandava que o último a mandar rezar antes do dia de Páscoa, tinha a direito a um prémio. Podia ser um beijo fugidio na face, ou um saco de amêndoas doces, um verdadeiro luxo e o mais habitual trofeu.
Não dava para mais e bondava. A par das correrias nas ruas e do espreitar nas esquinas à cata do parceiro ou parceira, para se dizer o dito, era algo que fazia o período da Páscoa absolutamente atrativo.

Podia-se enganchar com mais que um companheiro ou companheira. Bastava tê-los e sabê-los merecedores de créditos de amizade e de confiança, coisa fácil em tempos de inocência e de eternidade sentida.

Qualquer um juraria que naquele espaço de território largo à medida do alcance da vista, o tempo era eterno e que a vida haveria sempre de sorrir enquadrada que era por anseios facilmente alcançados.

Aperreações, só quando se rompia o traseiro das calças em escorregadelas na fraga, ou quando se danificava o calçado nos pontapés na bola chutada no meio da estrada ou no largo por entre muitas fintas de se lhe tirar o chapéu.

De oras em quando aparecia a “Guarda” sem que se topasse e passava uma multa de “dois e coroa”, que era o mesmo que vinte e cinco tostões. Aí sim era o cabo dos trabalhos. De resto, era sempre em frente no viver-se.

Volvendo à Pascoa. Claro que não havia dona de casa que se prezasse que não fizesse uma verdadeira barrela à habitação. No Domingo à tarde entrava portas adentro o Senhor e tudo tinha de estar limpo ao ponto de se poder comer no chão ou onde quer que fosse.
Claro que os corpos de cada qual não podiam escapar à onda de higiene, e de alto abaixo era de se aplicar ensaboadela atrás de ensaboadela com sabão cor-de-rosa, o melhor que se conhecia.

A vinda de Deus Nosso Senhor depois de ressuscitado para salvar a humanidade, mesmos os que mereciam estar no inferno ainda vivos, e não eram poucos, segundo o pregado pelo senhor Abade, obrigatoriamente tinha de ser preparada a preceito.

Missa dita com foguetes a Santos, havia o almoço para se saborear, depois de ter sido preparado com forno de lenha aceso e acomodado com os alguidares de arroz de forno com cordeiro assado. Quem tinha forno em casa, usava-o, quem nem tinha servia-se do forno comunitário.

O repasto é que não podia faltar e bem regado que um dia não são dias, e festa é festa. Logo a seguir, no nascer da tarde, meia dúzia de foguetes anunciavam a saída da comitiva da Igreja para entrar em todos os lares em visita solene e sentida.

Era tarefa quase até à noite. Mas no entretanto, bailava-se no largo ao som do altifalante e ao ritmo do mais moderno que havia em termos de músicas e canções. Não havia modernices ao ponto de se bailar fora da rua, mas no que respeita a discos, esses eram do mais atual que havia. Eram famosos os bailes nos arredores. Pediam meças.

Por falar em meças: - Quer enganchar comigo? Vossemecê que isto lê.


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