Magda Borges
Estado de (des)graça
O nosso país vive há vários meses mergulhado num estado de coisas muito atípico, para usar um eufemismo. As nossas vidas foram viradas do avesso, as nossas liberdades secundarizadas, os nossos direitos condicionados e garantias são cada vez menos.
Gostava de deixar claro que este artigo de opinião é escrito por alguém que tem ideologias e preferências que são públicas, mas que, não obstante, não deixará nunca de dizer o que pensa, seja quem for que ocupe o poder. No início desta tormenta, tive uma atitude positiva, de aplauso face ao que foi feito pelos nossos responsáveis. Não há intervenções perfeitas, mas o princípio foi globalmente positivo.
Nos dias que correm, acabou o estado de graça deste governo. Não por cansaço, mas por incúria, por incompetência. Dir-me-ão que está mal em todo o mundo. Concordo. A ausência total de lideranças mundiais foi o que nos conduziu a esta situação. A falta de qualidade dos indivíduos emerge sempre nos contextos mais difíceis e exigentes. Não temos líderes à altura do que enfrentamos. Nem no plano nacional, nem no plano internacional. São na sua maioria medíocres, impreparados e autocentrados. Apenas são eficazes na propaganda que fazem de apologia aos seus regimes.
Em Portugal, estamos numa situação de “o rei vai nu”, revisitando Hans Christian Andersen. Alguns veem que o rei não tem roupas, mas a maioria aplaude as belas vestes do monarca, para não parecer estúpida.
Falemos de planeamento estratégico. Conceito absolutamente ausente das ações dos nossos governantes. Nesta fase, fazer um planeamento estratégico a longo prazo é completamente impossível. Mas um planeamento no curto e médio prazo é urgente e vital. Lamentável a navegação à vista deste governo. Lamentável a falta de capacidade para perceber que esta situação tem que ser abordada tendo sempre como linha de horizonte três pressupostos base: é necessário granjear o contributo de todos quantos são experts nas matérias em questão; é fundamental antecipar cenários e prever medidas coerentes e aplicáveis a toda a população; é imperioso comunicar de forma clara com os cidadãos, educando pela informação e pelo exemplo.
Aqui assenta o busílis da questão. Se queremos que o cidadão comum aja em conformidade com o que está previsto para a sua proteção individual e da comunidade, então, quem tem responsabilidades tem de dar o exemplo. Liderança pelo exemplo é algo que está subjacente à ação de qualquer um de nós, sobretudo se exercermos cargos públicos. A realidade mostra-nos que estamos longe de ter líderes exemplares. Antes da COVID19 já era assim, com a pandemia apenas temos o reforço desta perceção. Senão vejamos, no pós-confinamento tivemos espetáculos no Campo Pequeno, finais da Champions, Festa do Avante e marchas do Chega. Tivemos Fátima e outras manifestações, como a da Black lives matter, apadrinhada por pessoas que fazem parte desta solução governativa. Em agosto, o país quase todo foi de férias.
Todos foram descansar, com a (in)consciência de que setembro seria um mês de regresso a uma normalidade que estamos longe de aceitar e de integrar no nosso quotidiano. Sei por experiência que ocupar cargos públicos implica deixar de ter férias, fins-de-semana e feriados. Num contexto de perigo para a saúde pública e de uma iminente crise global, confesso que entendo mal o facto de termos governantes a posar em calção de banho para as revistas socialite. Limitação minha. Admito. O que não admito é que enquanto estes senhores e senhoras estavam de férias a gozar do seu merecido descanso, milhares de portugueses viam os seus projetos profissionais arruinados (eventos, cultura, etc. etc…), outros antecipavam já o que lhes ia acontecer na rentrée, ou o que vai acontecer até ao final do ano. Despedimentos. Quebras gigantescas de rendimento no agregado familiar. Falta de acesso aos cuidados de saúde. Exaustão. Saúde mental debilitada. A lista continua.
Um menu vastamente trágico de eventos que deita por terra a vida das pessoas. Mas nada disto parece incomodar quem está no governo que está, neste momento, a esfregar as mãos de contentamento com os milhões que vêm da União Europeia. Milhões que vão servir para voltar aos tempos do outro senhor, cujo nome nem pronuncio. O banquete já está quase a ser novamente servido. Todos os portugueses já sabem quem vai ficar, como sempre, para arrumar a mesa quando ele acabar.
O primeiro ministro afirmou perentoriamente que o país não vai fechar. Estamos em sintonia. Se o país fecha é a hecatombe total. Apenas discordamos no modus operandi. Para o senhor Eng.º António Costa, o país não fecha porque ele assim o decreta. Por muito que gostasse de acreditar nos superpoderes do primeiro ministro, sendo que os de ilusionismo estão mais do que validados, não acredito. Ninguém governa por decreto. A realidade vem sempre, qual tsunami avassalador, engolir os pequenos humanos que estão a tomar decisões sem antecipar as consequências. Na verdade, por detrás da afirmação: “o país não pode fechar” o que está é: o país não pode fechar porque a Segurança Social não tem liquidez para dar apoio todos quantos dela vão precisar. Então, se não fechamos, não temos que pagar nada às empresas e restantes lesados. O problema é que as portas estão a fechar por falta de clientes. Paulatinamente vão encerrando. Em silêncio e em plena solidão.
É isto que está a acontecer. O governo continua em cortejo a passear-se pelo país, desperdiçando tempo necessário para encontrar soluções. Não aprendemos mesmo nada com a crise de 2008. A classe política continua com os mesmo tiques pacóvios que nos levaram ao buraco na altura e que levarão agora. O sistema de saúde está estrangulado. Os profissionais em burnout. Na educação reina a histeria generalizada, com as escolas entregues à sua sorte, por força de uma tutela que está em paradeiro desconhecido. As pessoas estão doentes, as famílias em dificuldades, faltam equipas multidisciplinares reforçadas para chegar a todos quantos lá vivem e precisam de apoio. Nenhum de nós sabe como viver neste momento, estamos todos a improvisar. Uns melhor outros pior
. Entretanto, a DGS dá luz verde à Fórmula 1 no Algarve, mas mostra o semáforo vermelho às idas às campas dos nossos entes queridos. A limitação tem de ser para todos. Ou para nenhuns. Mas temos de assumir as opções governativas, porque isto de criar uma regra para mil exceções confunde as pessoas. Confesso que recebia melhor a sinceridade de uma simples assunção: para nós o dinheiro vale mais que a saúde das pessoas. De algumas. Porque de outras não queremos saber.
Como a DGS aprovou os bólides no Algarve, os amantes do surf, na Nazaré, pensaram que as ondas ali são tão impressionantes como o ruído dos automóveis e o cheiro a pneu queimado, com a vantagem de que o surf causa menos danos ao ambiente. Resultado? Enchente na Nazaré. Assim, ninguém se entende. Enquanto andam alguns a cumprir escrupulosamente as regras e, ainda assim, a tentar contribuir para que o país não feche; andam outros a agir em modo catavento. O mínimo que nos podem dar é coerência e transparência. Parem de pedir às pessoas para não falarem, para esconderem. O vírus não desaparece se formos todos avestruzes de cabeça enterrada na areia. Estas areias são movediças e quem o fizer, desaparece.
Temos que enfrentar as coisas com responsabilidade e coragem. Peçam-nos o que for preciso, mas garantam que todos cumprem e que não há, como sempre, portugueses de primeira, segunda e terceira linhas. Apoiem quem está na linha da frente. Em todas as frentes. Olhem para as nossas crianças que já começam a dar sinais de fragilidade emocional grave. Parem de fazer de conta que vai ficar tudo bem. Já não está e se nada for feito, vai piorar imensamente.
Por favor, alguém chame a criança que grita: O rei vai nu! É a vez de ela entrar em cena.