Manuel Igreja
Este Natal que nos habita
Naquilo que é uma das poucas, mas das mais importantes coisas que diferencia os seres humanos dos outros animais, ao longo do seu percurso, é o processo de desenvolvimento, onde nos fomos conseguindo projetar para lá do visível, criando sensações, emoções e ligações.
Somos capazes de amar e de odiar algo que não vemos, conseguimos unir-nos em volta de algo que imaginamos e por isso criamos, conseguimos aplacar e ser aplacados por acreditar naquilo em que temos fé e, inclusivamente, conseguimos matar só por matar ou porque não toleramos o que é diferente.
Movemo-nos entrelaçados e entrelaçamos. Somos diferentes e fazemos a diferença na igualdade que nos diversifica e nos torna na mais sublime criação feita por acaso ou a mando de alguém superior que sentimos e pressentimos, apesar de, quem o assim entender, o possa recusar.
Criamos símbolos e mitos, quando não compreendemos, permitindo que eles nos habitem para que também em nós habite a verdade, mais tranquilidade, mais bondade para dar e para receber, mais vontade de fazer bem sem olhar a quem, e mais otimismo no desejar os dias ainda por acontecer.
Nesse devir, o conceito de Natal é uma das mais agradáveis sensações e uma das mais eficientes maneiras de sermos um pouco melhores, nem que seja por uma mera meia dúzia de dias. Com o pretexto de celebrarmos o nascimento de um menino, que esteve nas palhinhas deitado, imaginariamente aquecido por um burrinho e uma vaquinha, sem darmos por isso, fomos sendo campo feito de solidariedade focada nos outros.
Poderá ser sol de pouca dura, nos muitos dias que um ano tenha, mas estou em crer que o Natal, que habita em nós, sem que lhe tenha sido dada permissão, vai resistindo ao instinto que nos quer empurrar para as veredas do egoísmo neste nosso tempo de muitas pressas, de muitas necessidades e de muita espuma que brota por entre as situações que aperreiam a navegação sem ventos favoráveis, porque desconhecemos o
porto de destino.
Num olhar de relance, pelo retrovisor que nos desenha as vivências que já foram, mas nos compõem a memória, poderemos ser levados a dizer que o Natal agora não é como foi e que, no futuro, corre o risco de deixar de ser o que era. Não sei, pois quedando-me a apreciar em volta de mim e de vossas senhorias, sou levado a pensar que, por entre as luzes da ribalta e das azáfamas das labutas e das disputas, ainda brilha, entre o cinzento, a luz que nos lembra a essência.
Sabemos bem que a dinâmica do consumir mais para termos a sensação de que temos cada vez menos, o que nos leva a querer cada vez mais, adulterou o magnífico gesto de ofertar, mas continua em nós acesa a chama que nos permite distinguir e ser distinguidos por quem nos é mais próximo, no sentir e no dever sem direito e sem registo.
Por isso, e não só, gosto muito do Natal. Podemos até admitir que exista alguém que diga que não gosta e que se poderá estar a diluir o seu espírito. Muitos estão a agir como se o seu e o dos seus seja único, pensando-o como exclusivo e feito à medida. Mas, ainda que o Natal possa ser quando um Homem quiser, o bem-querer que o esteia perdurará enquanto houver vento e marés.
Para terminar, pois tenho de ir cuidar das renas, só lhes digo que, numa noite destas, alguém lhes vai provar que tudo existe. Basta acreditar e concertar as frinchas da casa por onde se esvai a crença do que é belo, e por onde pode entrar a ventania que derruba dos móveis os contornos do que nos faz sonhar.