Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Estórias à Lareira: Ti Maria Benta

— Rosa, ó Rosa?

— Sim, meu pai.

— Vai ao cabanal e traz uma gabela(1) de vides pra acender o lume, se fazes favor. E há outra coisa, antes que me olvide: depois da janta, vem até cá o Zé Júlio e a mulher. Combina com a tua irmã e arrumem esta casa, que nem um brinquinho!

— Vou fazer um bolo para lhes servir.

— Tens sempre boas ideias, minha Rosinha! E, de caminho, traz uma cesta de castanhas para assarmos quando eles chegarem.

— Chamo a Judite para me ajudar. Deixe tudo comigo, meu pai, não o deixaremos ficar mal com as visitas.

— És um anjo, minha querida. Vai lá, e cuidem de tudo. O que seria de mim sem vós?! Um pobre desgraçado, isso é que era!

Viúvo há um bom par de anos, via nas filhas a companhia que lhe faltava desde a morte da sua tão querida esposa, Maria Amélia, a quem amara profundamente, mais do que a si mesmo. Fora um marido exemplar, amantíssimo, prestimoso e um pai que rodeava as pequenas de amor, carinho e atenções. Num ápice, viu fugir-lhe dos braços a sua amada esposa, como água que se esvai entre os dedos. Uma doença tenebrosa, que aparecera silenciosamente, corroeu-a vorazmente em poucos meses. As jovens eram a alegria da casa. Vendiam beleza e vivacidade, e os rapazes da aldeia bem que lhes achavam graça, sempre que as viam passar para irem à mercearia ou acompanhando o pai à missa do senhor Pe. Adelino. Os rapazes… ficavam a olhar de soslaio vendo-as passar com os seus belos vestidos rodados, que a madrinha lhes fazia, e laços de seda nas longas tranças, encantando e dependurando qualquer coração feliz. Que raparigas! Perfumavam, de alegria, todos os sítios por onde passavam. Eram as meninas mais apreciadas em toda a aldeia. O pai e a mãe, tinham-se esmerado na educação que lhes deram e elas brilhavam em resplendor sempre que alguém lhes perguntava algo. Sabiam todas as matérias, porque eram muito interessadas em estudar e questionar. Até o senhor Pe. Adelino, com grande vaidade, fazia-lhes perguntas na frente de outras pessoas. Sabia que as respostas eram divinamente bem respondidas, deixando-o em estado de levitação de puro prazer.

Jantaram, como de costume, às 19 horas, um delicioso arroz de cabidela, feito com uma galinha da capoeira que, havia uns tempos — isto das galinhas também tem o que se lhe diga —, teimava em fazer greve aos ovos.

Judite franzia o sobrolho ao jantar; e o pai, atento a todos os pormenores da filha…:

— Se a galinha não põe ovos, para que nos há de servir? Diz-me lá, Judite?

— Paizinho: já sei que vai troçar de mim. Mas afeiçoei-me a ela!

— Ó! pequena. Querem lá ver agora que não podemos comer da criação?! Então para que nos servem as galinhas, os coelhos, os patos, os perus, os porcos, o gado…

— Tem razão, paizinho, mas…

— Anda cá, pequena. — Ti Joaquim abraçava a filha e beijava-a na testa, com a mesma delicadeza com que se beija uma rosa-branca. — Come lá o arrozinho que está uma maravilha! A nossa Rosa tem cá uma mão prá comida… Bem sabemos a quem saiu. A comida da vossa mãezinha… Meu Santo Cristo! Quantas saudades me moem dentro do peito…. Vamos lá, meninas, toca a comer antes que arrefeça. A comida depois de fria não presta pra nada. — nisto, os olhos começavam a encher-se-lhe de água.

Jantaram sem grandes conversas, nada mais que as circunstanciais. As pequenas levantaram a mesa e puseram-se a arrumar a cozinha - sabiam que dali a nada iriam chegar as visitas.

Ti Joaquim deixou-se ficar sentado no escano(2) à lareira. Pegou nas tenazes e foi a ajeitar as brasas, sem grande rigor. O fole, que servia para atiçar o fogo, ficou-lhe entre as mãos como instrumento de ajuda à meditação em que acabara de entrar. Só despertou quando se ouviram vozes:

— Ó da Casa? Está por aí alguém?

— Entre que é! Vão entrando, se fazem favor. — dizia Ti Joaquim com o rosto vestido de um novo semblante. Adorava receber visitas e, sobretudo, gostava da companhia de pessoas arejadas, podia ser que acrescentassem algo ao seu dia.

— Então boas noites, às meninas e ao Ti Joaquim… — dizia, Zé Júlio, com um sorriso de orelha a orelha; e a mulher, secundava-o num ar sereno de quem sabe vestir delicadeza.

— Entrem e não façam cerimónias. Faz de conta que estão na vossa casa. Ora sentem-se, se fazem o favor.

Acomodaram-se nos dois escanos que estavam de frente a frente, junto à lareira. Rosa e Judite pulavam no seio de alegria com a vinda das visitas. Era uma lufada de ar fresco que lhes entrava casa adentro. Muito prestimosas, serviram bolo de chocolate e licor de noz verde caseiro. Trouxeram, também, a cesta das castanhas que Ti Joaquim de imediato vazou no assador, dependurado na argola da lareira. Foram a assar nas altas labaredas, que alumiavam mais do que a própria luz da cozinha. Era dia de Todos os Santos; dia de visitar os nossos no cemitério, trazendo memórias impregnadas em saudades. As pequenas sentaram-se junto do pai. Sabiam o resultado destas visitas — havia sempre alguma novidade que acabaria por saltar no meio da amena cavaqueira em redor da lareira.

Depois das formalidades iniciais, perguntando por todos e pela saúde de cada um, assim como pelas lides do campo, querendo saber das colheitas e como tudo corria, a conversa começou a correr mais solta — talvez o licor, delicioso como nenhum outro naquela aldeia, ajudasse a soltar a alma aos convivas.

— Hoje, tenho uma história… bem… não é uma estória, passou-se mesmo de verdade. Podeis fazer fé que, o que vos contarei, é a mais pura das verdades. A ver se fazeis caso. Há uma data de anos, morava aqui a Ti Maria Benta — suponho que nenhum de vós chegou a conhecê-la. Não interessa. Vamos pra diante. Era uma mulher muito recatada, nunca se via na rua a não ser para ir ao soto(3) aviar-se. Ah! Já me esquecia! Também gostava de ir à missa ao domingo. Esta mulher tinha dois filhos: um rapaz e uma rapariga. Ambos estudavam em Chaves. Era costureira e, diziam as mulheres que lá iam encomendar as roupas, tinha mãos de fada. O certo é que nunca se lhe conheceu o marido. Uns diziam que abalara pra Lisboa à procura de trabalho e por lá ficara sem retorno; outros diziam que morrera; o que vos posso garantir é que nunca se soube quem era o pai dos filhos, pelo menos eu nunca dei por tal indivíduo! Mas o que isto tem de especial, dizei-me vós?

Em uníssono diziam:

— Conte, conte, que a história parece interessante!

— Então cá vai. — rematava, Ti Joaquim, enquanto mexia e fazia saltar as castanhas no assador. — Nas noites quentes de verão, eu gostava de ficar na varanda a apanhar ar fresco. Sentava-me numa cadeira de recosto, e, às vezes, até adormecia, mas nos dias em que estava mais desperto… — fazia uma pausa propositada para espicaçar o interesse da audiência.

— Vá, continue, paizinho! — atalhava a filha mais nova, Judite.

— Quereis saber o sucedido, não é verdade? Escutava um assobio muito bem trinado. Pouco depois, abria-se a porta da casa da Ti Maria Benta. Mas ela não se arrimava(4) à soleira! Pus-me guicho(5) a dar conta da situação. Apareceu um vulto — era um homem —, que começou a olhar em redor a ver se estava alguém de vigia — melhor fora que não tivesse dado tanto alarido. Entrava e pronto! Ninguém se apercebia do caso. Dali por uma ou duas horas, tocou em retirada; desta feita, o assobio já não piava — devia ir de papo cheio!

— Ó! paizinho! — dizia a Judite. — Se calhar foi consertar alguma coisa estragada. O pai não disse que a Ti Maria Benta vivia sozinha, não tinha marido?!

— Foi, sim, minha filha — consertar-lhe a fechadura! — e rindo da ingenuidade da filha, agitava as castanhas, lá bem para o alto, para que não se queimassem no fogo vivo das labaredas.

Todos desataram a rir, agarrados à barriga, menos Judite que não percebia bem a situação.

— Mas o caso não ficou por aqui. Dali a dias, repetiu-se a cena! Bem mirei o sujeito…

— E descobriu quem era? — atirou de pronto Rosa.

— O malandrão punha um boné na cabeça, um casaco bem aconchegado até ao pescoço e dava sempre as costas pra cá. Aproveitava a penumbra da noite para fazer estas visitas. Este era um sabidão! Mas fiquei à espreita. Quando saiu, mais escuro do que quando entrara, foi muito pior para ver se o reconhecia. Então do que me lembrei? Tinha de o seguir de longe, de modo que não me persentisse, para saber onde morava.

— E descobriu, paizinho? — de novo o interesse aguçado de Judite.

— Não foi fácil, não senhor. Este era mesmo dos sabidos. Tinha a escola toda, olé se tinha! Suponho que desconfiou de mim. Meteu-se por várias ruas e canelhas(6), quando morava tão perto. Mas como sou raposa manhosa, um dia dei um passeio mais largo… para ver se o seguia até casa. Fiquei desiludido.

— Então, paizinho, quem era o homem? — investia de novo Judite.

— Era um homem casado e bem-casado, nosso vizinho, vejam bem. Se fosse solteiro ou viúvo, vá que não vá, mas um homem casado não estava certo. Isso não se faz, não senhor. — e meneava a cabeça em sinal de reprovação.

— E a coisa terminou por ali, ou continuaram as visitas à Ti Maria Benta? — perguntou Rosa. — Tome lá a taça, meu pai; deite aí as castanhas assadas. Que cheirinho tão delicioso!

Rosa colocou uma folha de couve em cima das castanhas, para abafá-las e amaciarem. Ti Joaquim prosseguia com a história:

— As visitas foram cada vez mais à descarada; e a pobre da mulher dele, uma delicadeza de senhora, sem saber de nada. Isto estava-me cá a remoer os fígados!   

— Ó! paizinho e vossemecê não fez nada? — questionou Rosa.

— Ó! minha filha o que podia fazer nesta situação? Ele um desavergonhado; ela sem marido e com as solas ainda por gastar! Estava ali um caso bicudo, ó se estava! O caso, ou descaso, já nem sei o que dizer, precisava de ser muito bem estudado para ser resolvido de uma vez por todas. Andava eu por aí a matutar, e torna de matutar, até que a vossa mãezinha, que Deus a tenha em bom descanso…

Responderam todos:

— Amém.

Entre cada frase que Ti Joaquim acrescentava, todos metiam a mão na taça para tirar castanhas, que debulhavam com prazer, atirando as cascas ao lume, absortos na deliciosa história. Além do licor, para acompanhar o bolo, foi também servida jeropiga caseira. Nem se davam conta do que comiam e bebiam, tal a nuvem de puro prazer em que estavam envoltos.

— A vossa mãezinha, vendo-me em tais preparos, chegou-se ao pé de mim e disse: — Ó! homem, o que tens? De há uns dias para cá, andas estranho? — Tive de abrir o jogo com ela, teve de ser, estava quase a rebentar. Bom, contei-lhe o sucedido e… a vossa mãe disse-me que não me ralasse. Havia de arranjar uma solução pró-caso.

— Ó Ti Joaquim não me diga que a sua senhora tratou do assunto?! — perguntou Zé Júlio.

— A minha Maria Amélia era uma mulher especial. Como poucas nesta terra! Perdoe-me, minha senhora, sei que predicados não lhe faltam, e só lhe ficam bem. — dirigia-se à esposa do Zé Júlio, a senhora Joana.

— O que fez, a mãezinha, pai? — dito isto, Rosa, erguia-se do banco para ir buscar mais bolo, licor e jeropiga; e, com mãos delicadas e de uma alvura impressionante, servia um por um.

— A vossa mãe, com a desculpa de mandar fazer uma saia nova, foi a casa de Ti Maria Benta. Vendo-se a sós com a mulher, tratou de chamá-la à razão. O que conversaram ao certo… não sei.

— E o que aconteceu? — Judite, sempre atenta e curiosa, atirava perguntas, umas atrás das outras.

— A mulher, sentindo-se envergonhada por ser descoberta, agarrou nas trouxas e abalou para junto dos filhos, em Chaves.

— Fez bem, está certo. — diziam todos.

Rosa devia andar com um grãozinho na asa - algum moço da aldeia debaixo d'olho -, rematou:

— E o amor deles acabou assim?!

— Filha se ali havia amor não o sei, mas era uma pouca-vergonha o que se passava, isso é que era! Ou ele seguia com a Ti Maria Benta, ou ficava com a mulher. Com as duas é que não podia ser. Isto era uma sem-vergonhice!

Foram comendo o delicioso bolo de chocolate, as bilhós(7) assadas e contando uma anedota aqui e outra acolá, até que se fez tarde.

Os convidados, com toda a cordialidade dos bons vizinhos, despediram-se.

As pequenas ficaram a matutar na história, noite dentro, tentando arranjar um final diferente para este enredo, não lhes fosse pródiga a imagética.

Ti Joaquim, dando o serão por encerrado, espargiu água para apagar as últimas rachas(8) de lenha que ardiam no lume, beijou as filhas e deitou-se.

 


(1) — Gabela: feixe ou molho de lenha seca
(2) — Escano: banco de madeira, para duas ou três pessoas, com costas altas e uma mesa basculante
(3) — Soto: mercearia, loja de compras
(4) — Arrimava: aproximava de algo
(5) — Guicho: esperto, atento
(6) — Canelha: rua estreita
(7) — Bilhó: castanha cozida ou assada sem casca
(8) — Racha: pedaço de lenha para a lareira


 

Conto:  © Teresa do Amparo Ferreira, 13-11-2021

 

 


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