Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

Fausto e o poder de poder dizer

Foi já visivelmente debilitado na sua frágil saúde que Fausto Bordalo Dias (1948-2024), numa entrevista televisiva, ousou pronunciar estas palavras: «Cabo Verde não existiria como país independente, se Portugal não tivesse levado para lá pessoas (…). Muitos países africanos foram mais felizes, infelizmente, com Portugal, do que são agora. Quando uma independência não concorre para a felicidade dos povos, alguma coisa está errada.».

Se outro fosse, que não Fausto, a dizê-lo, quantas vozes não trovejariam no vendaval dos céus político-mediáticos?

Na verdade, só a circunstância de ser um génio permite que assim o diga no desassombro de um jeito que, nos dias de hoje, é comum carimbar como politicamente incorreto. Só ao génio, levando em boa conta o pensamento estético de Kant, é permitido libertar-se dos valores impostos, afrontar consensos. O desvio da regra comum fica-lhe bem, a coragem é mérito. Livre de toda a culpa, o génio é uma espécie de herói que se alavanca na deformidade das normas. Para o homem medíocre, essa deformidade é um erro. Para o génio, não.

 “Eu sou eu e a minha circunstância, e, se não a salvo a ela, não me salvo a mim”, disse o filósofo Ortega y Gasset. Daí que o verdadeiro poder esteja sempre na circunstância do que somos. Primeiro, é preciso saber ser, mais do que saber estar. Saber estar é uma habilidade social, um modelo estratégico de adaptação a diferentes contextos sociais; saber ser é uma imposição de carácter, de autonomia, abnegação. É, pois, um dos requisitos mais poderosos da personalidade humana.

 Uma personalidade que Fausto, figura ímpar e irrepetível, o contador de histórias que pela música e metáfora das palavras pôde recontar alguns dos capítulos mais grandiosos da História de Portugal, consignou em páginas de ouro da música portuguesa.

In: JN, 19-07-2024


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