Teresa A. Ferreira
Festa de Santo Estêvão de Torre de Dona Chama é Património Cultural Imaterial
A Festa dos Caretos, dos Rapazes e de Santo Estêvão de Torre de Dona Chama, está inscrita no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.
Como flamense, sinto enorme regozijo por se ter dado este passo. Agora, meus caros, há que avançar para a UNESCO. E não estou a sonhar. Estou a ser realista. As festas têm grande valor e significado, tanto para os flamenses, que as vivenciam, como para quem as tem estudado.
Não quero deixar passar esta oportunidade, sem vos dar a conhecer os meandros desta festa.
Natal, em Torre de Dona Chama, é sinónimo de reunião da família e de Festa dos Caretos e Santo Estêvão.
Os flamenses guardam férias para regressarem à Terra nestes dias. Sentem esta festa de maneira especial, dado que, nesta ocasião em concreto, não há classes sociais. Diverte-se o rico e o pobre, lado a lado. A continuidade das celebrações, deve-se ao espaço dado ao improviso, sendo que, não é esquecida a génese da tradição.
A Festa consiste na recreação da batalha entre mouros e cristãos, cujo objetivo é a reconquista do castelo e da localidade de Torre de Dona Chama aos mouros.
Reza a lenda de que os cristãos estavam em posição enfraquecida face aos mouros. Houve a necessidade de montar uma estratégia para os derrubar, envolvendo tudo e todos da localidade, executada nos dias 25 e 26 de dezembro.
Dia 25 de dezembro
No Largo do Pelourinho e do Berrão, acende-se o gigantesco madeiro, por volta das 20:30. Este é o ponto de partida para se dar início à execução do plano. A lenha vai ardendo, noite fora, até se extinguir.
Cabe a um grupo de homens roubar todas as montarias dos mouros, para os enfraquecer, ou seja: Roubar os Burros.
Outro grupo vai, de casa em casa, percorrendo toda a localidade, munido de embudes (funis enormes) Deitar os Jogos à Praça. Estes dizeres são a senha de guerra para cada um saber o que tem a fazer na batalha, que se travará no dia seguinte.
Nem as crianças foram deixadas de fora. Um homem mais maduro intervém como Pastor e o Seu Rebanho. Este teatro é pura distração para não gerar desconfianças.
Diz o povo e com razão: “Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto.”.
Vou, então, contar-vos algumas peripécias que me foram chegando aos ouvidos e outras vivenciadas, sobre acontecimentos passados no dia 25 de dezembro.
Depois do jantar, alguns moradores vão até à fogueira para apreciar o que por lá se passa; outros ficam a guardar a loije[1] do burro, não vá dar-se o caso de alguns mariolas lho irem roubar; e outros esperam pacientemente, em casa, a senha de guerra.
Ti Ana, boa senhora e que Deus a tenha em bom descanso, um certo ano, resolveu que ninguém lhe havia de roubar o burro. Não pense o leitor, mais desprevenido, de que este “roubar” é verdadeiro. Nada disso. No dia seguinte, após a festa, os animais são devolvidos aos donos, sãos e salvos. Tudo isto faz parte da encenação. Continuemos então.
Morava numa casa rústica de pedra. No primeiro andar, vivia a família; e por baixo, ficava a loije do burro, a adega e outros arrumos.
Foi à loije, pôs a cabeçada e os arreios ao burro e encaminhou-o, a muito custo, pelas escaleiras exteriores até ao primeiro andar. Meteu-o na cozinha onde tinha a lareira acesa. Sendo uma senhora muito asseada e briosa, veio-lhe ao pensamento de que o animal poderia defecar no seu bonito chão de soalho, que tanto trabalho lhe dava a manter. E, nesses pensamentos, surgiu-lhe a ideia de arranjar uma fralda ao burro. Foi procurar um grande plástico que utilizou para o efeito. Sentou-se junto à mesa, bem próximo da lareira, enrolou as rédeas no braço e com o passar das horas adormeceu debruçada sobre a mesa.
Um sobrinho da ti Ana, foi com uns rapazes à loije dela, para lhe roubarem o burro. Nada! Onde estará guardado o burro? – diziam eles. Bem procuraram por todos os lados possíveis! Lembraram-se de subir as escaleiras. Em pés de lã, foram parar à cozinha. Especados com o que viam, tapavam a boca com uma mão e a outra seguravam a barriga, para não acordarem a senhora com tamanho ataque de riso:
- Um burro de fralda! Onde é que se biu[2] tal cousa?!
Foram-se embora sem roubar o burro.
Junto à fogueira, enquanto me aquecia pela frente e a traseira enregelava - lembro o leitor de que nesta época costumam estar temperaturas bem abaixo de zero graus centígrados -, escutei ti Maria dizendo para a vizinha:
- Sabe o que fiz, Tonha? Botei três aloquetes[3] na porta da loije do meu burro. Este ano, essa malandragem, não mo rouba. Ai deles!
A vizinha, anuindo com um leve sorriso, fez que acreditou na conversa.
Dali a pouco - meia hora, talvez -, apareceram uns rapazolas ao pé da fogueira em grande algazarra, exibindo o troféu a duras penas conseguido. Um, vinha montado no burro; e dois, a pé, rindo e segurando as rédeas. O burro estava um espanto! Vi-o com estes olhos que a terra há de comer. Chapéu de palha adornando a cabeça e um cachecol de listas coloridas ao pescoço.
Ti Maria, incrédula, dando-se conta do caso, atirou bem alto para quem a quis ouvir:
- Filhos duma puta! Não é que me roubaram o burro!
E o povo ria a bandeiras despregadas.
- Fazei-me cuidado com ele, oubistes[4]? Se não, amanhã, parto-bos[5] os cornos.
Depois desta, brotavam gargalhadas, soltas e estridentes com o responso da ti Maria.
Os burros roubados, passavam pela fogueira para seguirem até ao esconderijo onde iriam pernoitar até ao Cortejo da Ciganada, no início do dia seguinte. Este cortejo, tem um grande significado no desenrolar da estratégia da reconquista. A seu tempo saberão tudo.
O grupo que deita os jogos à praça, divertido e bem bebido, secundado por tocadores de caixa e bombos, fazia rir os moradores que não ousavam pôr o pé fora de casa.
Abeiravam-se de uma casa e, de embudes a postos, deitavam os jogos:
- Manda El-rei meu Senhor! (Bis)
- Que amanhã! (Bis)
- Saiam com os seus jogos à praça. (Bis)
- O ti Chico? (Bis)
- Olha o gaiteiro fadista! (Bis)
- Bem te pinta! Bem te pinta! (Bis)
Animadamente seguem para a próxima casa que, melhores dizeres não lhe espera! Todos quantos acompanham o grupo, ficam em suspenso à espera do que irá calhar ao vizinho, para se desmancharem a rir, prova viva do são convívio entre todos.
Tendo terminado o percurso, regressam à fogueira sem fôlego e com as pernas bem desgastadas. Mas muito terão ainda pela frente. Ninguém vai à cama até terminarem as festas, daí o imperativo de manter esta boa gente quente e com o estômago aconchegado. Há uma enorme panela de café e outra de cacau, na fogueira, sobre as brasas, vinho em abundância, aguardente, bacalhau seco para puxar à bebida, carne assada, pão e caldo verde. Todas as pessoas comem e bebem o que lhes apetecer.
Em tempos idos, ti Zé Estraga, homem bom, humilde e com numerosa família, formava um rebanho com os garotos do Bairro de Cima, que cumpriam o papel de cordeirinhos e ele o de pastor. Este momento era aguardado o ano inteiro com enorme alegria e ansiedade pelas crianças.
O rebanho seguia, fervorosamente, o seu líder, de casa em casa, vestindo cada um, uma pele de ovelha e chocalhos ao pescoço. Tudo cumpria e seguia a preceito.
Chegados à soleira de uma casa perguntava, ti Zé Estraga, ao rebanho:
- O meu gadinho tem fome?
A garotada prontamente respondia:
- Mé, mé, mé...
De novo interrogava o rebanho:
- O meu gadinho tem sede?
Respondia o rebanho:
- Mé, mé, mé...
Os donos da casa abriam a porta e lá davam qualquer coisa, pouca, normalmente davam jeropiga, o que não era nada bom para os garotos, tinham mais fome do que sede. Os tempos eram apertados para todos, e, de porta em porta que se abria, lá se matava um pouco a fome e a sede a este animado rebanho. Tempos longínquos!
Dia 26 de dezembro
Durante toda a noite de 25 para 26 de dezembro, ninguém vai à cama. Junta-se o povo à volta da fogueira, no Largo do Pelourinho e do Berrão, festejando, convivendo e aconchegando o estômago, não havendo falta de comida e bebida a todos quantos apareçam, sejam da terra ou forasteiros, comem e bebem com os demais. Os burros, continuam a ser roubados toda a noite.
Neste dia, 26 de dezembro, as tradições festivas subdividem-se em várias manifestações que elenco por ordem cronológica de execução:
Desfile da Ciganada
Desfile das Madamas
Missa de Santo Estêvão e Bênção do Pão
Correr a Mourisca
Reconquista do Castelo
Ovelha Ferida
Arruada de Bombos
De manhã cedo sai o Desfile da Ciganada, onde são exibidos os burros roubados, cujo objetivo é mostrar aos mouros que não têm montarias e, assim, feri-los no ego. Os cristãos que vão desfilar com os burros passam pela fogueira onde, com carvão, enforretam[6] a cara para não serem identificados.
Assim que termina a Ciganada, segue-se o Desfile das Madamas. Gente travestida, satirizando através do exagero o género oposto, participa no desfile. Vêm de cara tapada, com panos de renda; trazem no braço um saco de farinha ou farelos e água para atirar ao povo; trazem nabos e rabas[7] que usam como falos para provocar risada por onde passam; num tabuleiro, há rodelas de nabo para meterem na boca das pessoas, que assistem ao cortejo. Este desfile, é uma espécie de Carnaval antecipado e encaixa na encenação teatral como uma representação do profano.
A Missa a Santo Estêvão tem por objetivo a conversão do rei mouro. Nela participam os reis de ambos os lados, cristão e mouro, e a forma de os distinguirmos é pela vara que empunham, sendo que o mouro tem uma laranja espetada no cimo da vara e o cristão, uma maçã. No final da missa faz-se a Bênção do Pão que cada participante leva à cerimónia religiosa e uma pequena procissão em volta da Igreja. O povo, quando chega a casa, reparte o pão por toda a família, pelos animais domésticos e do campo, como sinal de proteção para todo o ano.
Terminadas as cerimónias religiosas, dá-se início ao Correr a Mourisca apoiada pelos Caretos, que se colocam do lado dos mouros. Esta encenação, da dura batalha entre mouros e cristãos, começa no adro da Igreja Matriz e termina no Largo do Prado, culminando com a vitória dos cristãos sobre os mouros.
A Reconquista do Castelo é assinalada com a sua queima. Previamente foi construído um castelo, em cenário, que será queimado. Todo o povo se junta em volta para festejar a vitória.
Em tempos idos, Ti Cacherra vestindo uma pele de ovelha com marcas de sangue, representando a Ovelha Ferida, aparecia com um saco de cinza que espargia em cima do povo, afugentando-o.
Estas representações ligadas aos animais ovinos — o Pastor e o seu Rebanho, dia 25 à noite; a Ovelha Ferida, dia 26 após a queima do castelo — caíram em desuso, mas urge revitalizá-las.
Para assinalar a vitória dos cristãos, assegurando que não restam mouros, sai uma Arruada de Bombos, rufando bem alto e percorrendo toda a localidade.
Papel do Careto nas festividades
O Careto de Torre de Dona Chama, apenas sai à rua no Natal e tem um papel interessante neste ritual: simboliza o rapaz solteiro, transgressor, fazendo cabriolagens por todos os lados e tomando o partido dos mouros. O fato é confecionado em tecido nobre, ornamentado com franjas de seda e composto por duas peças: calças e um casaco com capuz do qual pende uma borla. Esconde o rosto atrás de uma máscara de lata, cabedal, cartão ou ferro, sendo sempre pintada.
Assim, terminam as festas natalícias, cheias de alegria e vontade de, no próximo ano, voltar.
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[1] Loije - Estábulo
[2] Biu - Viu
[3] Aloquete - Cadeado
[4] Oubistes - Ouvistes
[5] Parto-bos – Parto-vos
[6] Enforretam — pintam
[7] Rabas — tubérculo que está entre o nabo e a beterraba e só se cultiva em Trás-os-Montes. Faz parte da consoada.
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Vídeos:
Deitar os Jogos à Praça https://youtu.be/3e39Dvn4l_s
A Fogueira https://youtu.be/5KgW-DQtQMg
Reconquista do Castelo https://youtu.be/jmW5R6ObsC8
Fontes:
O inverno esconde o Careto, Telmo Carvalho, 2001.
Comemorar o passado ou o “mouro” no presente – A Festa dos Caretos em Torre de Dona Chama, Barbara Alge, 2006.
Texto, fotos e vídeos:
©Teresa do Amparo Ferreira, 19-12-2021