Carlos Ferreira

Carlos Ferreira

Geografia Política do descontentamento e dos excluídos: ou o conto do vigário; ou a pomada da banha da cobra…

GEOGRAFIA POLÍTICA DO DESCONTENTAMENTO E DOS EXCLUÍDOS: OU O CONTO DO VIGÁRIO; OU A POMADA DA BANHA DA COBRA…

 

Preâmbulo: arramo aqui mais alguma tinta sobre a badalada temática dos resultados obtidos por André Ventura (AV) nas últimas eleições presidenciais, a que eu apelidei: Geografia Política do descontentamento e dos excluídos.

Os que nascemos antes de 1974 lembramo-nos bem do reboliço que eram as antigas feiras regionais do interior, muitas delas meio feira, meio romaria. Todos os habitantes locais estavam alertados para os perigos que vinham com os forasteiros que procuravam fortuna fácil: os que contavam o “conto do vigário” e extorquiam dinheiro; os vendedores da banha da cobra que curava todos os males e maleitas existentes à face da terra; os jogadores da vermelhinha e batota que a todos ganhavam; as infelizes meretrizes insalubres que contaminavam todos os jovens e velhos em demanda ocasional de sexo; os falsos e verdadeiros aleijados que pediam por Deus; os que vendiam burro velho por novo e gato por lebre… e todos sabíamos, e havia sempre imensos que caíam, compravam, consumiam e se deixavam enganar!?

 

1. O “caldo” que a televisão, os jornais e as redes sociais vão parindo todos os dias: corrupção económica; impunidade e marasmo judicial; imensas figuras ligadas aos sucessivos governos e partidos que por lá passaram (PS, PSD, CDS). E agora o BE e PCP que viabilizaram a Geringonça e por isso já não servem para voto refúgio! De entre as roubalheiras recentes cito apenas os casos BPN, BCP, Portugal Telecom, EDP, BES/Novo Banco, Submarinos, TAP, as comunais Isenções Fiscais, os Vistos Gold, o Apagão do Fisco, os negócios escuros do Futebol... Os interesses dos grandes grupos económicos a sobreporem-se continuamente aos interesses políticos e do Estado. O clientelismo político, os boys e os amiguetes. O comportamento da direita e da esquerda a ser idênticos, com as personagens que os encarnam a cruzarem interesses imensas vezes. A desinformação, o volume de notícias falsas programadas que grassa pelas redes sociais, redes essas que deram voz a um exército de gente que não a tinha, e que imediatamente fez de todos eles especialistas em todas as matérias. O recente ultraliberalismo mundial que permitiu a criação de gigantescas oligarquias e uma concentração pornográfica da riqueza do planeta. A grande crise ambiental. A memória ainda recente da grande crise do subprime que arrebanhou as pequenas poupanças de uma vida a muita gente humilde. Uma pandemia que já dura há um ano e, que, social, económica e psicologicamente deixa tudo propício para que aconteçam os mais nefastos fenómenos de ódio extremo.

 

2. O “país destroçado”, retângulo dividido longitudinalmente em formato territorial de 1/5 vs 4/5: um quinto de litoral rico, densamente povoado, com todas as infraestruturas e serviços, altamente urbanizado, que concentra 90% da oferta turística, com oportunidades de emprego, que já ultrapassou a média de desenvolvimento da UE, que concentra todas as sedes do poder político e as universidades que geram o saber, uma Lisboa que suga despudoradamente todos os recursos produzidos pelo país fora, arrogante, surda, altiva e informada; contra quatro quintos de interior totalmente despovoado, envelhecido, pobre, com parcas infraestruturas e serviços fundamentais, sem comboios e sem aviões, que todos os anos arde, se inunda ou seca, com desenvolvimento e PIB per capita dos mais baixos da EU, sem oportunidades, sem empregos, que todos os anos perde os poucos jovens que vai produzindo, retalhado em dezenas de Reservas e Parques Naturais forçados e geridos pelo ICN de Lisboa como se fossem os “bucólicos Reinos Maravilhosos” de Miguel Torga, que concentra a metade dos distritos de Portugal continental e que apenas elege 37 dos 230 deputados da Assembleia da República, completamente deprimido e cansado de gritar socorro, completamente exausto. Onde os idosos gerem pensões de miséria e se perdem no abandono perpétuo, onde os jovens querem fugir para a capital e para o estrangeiro, onde os políticos nunca vêm porque nem sequer há votos para conquistar.

 

3. O “o messias salvador” bonitão e jovem, oriundo do sistema político normalizado, que grita alto as promessas, carismático e provocador, que direciona o seu microfone para os eleitores cansados de eleger sempre os mesmos partidos que nos trouxeram até onde estamos, que se diz ser diferente e fora do sistema vigente, que foi embalado nos Açores e agora no continente pelo PSD, no almejo de chegar às suas legítimas ânsias de ser governo, que apenas se limitou a copiar a maior bancada do Parlamento Europeu, a do Partido Popular Europeu (PPE), que normalizou e permitiu integrar no seu seio partidos de extrema-direita da Polónia, Áustria, Dinamarca e Hungria (Fidesz), onde se mantem às rédeas do poder o Primeiro-Ministro Viktor Orbán. Que diaboliza todos os demais espetros políticos, mas que tem um programa político a dizer que nos levará de cavalos para burros, porque nos iria fazer pagar a escola dos filhos, fazer pagar todos os cuidados de saúde, fazer pagar tanto IRS aos pobres como aos ricos, que diz que os pobres, tal os do interior, nunca entrarão dentro da sua classe “pessoas de bem”, que diz uma coisa e faz o seu contrário, que não tem respeito pelas instituições nem por ninguém, que não tem soluções, mas que denuncia!

 

4. E os “humildes justos” que sempre acreditaram em todos os milagres de todas as “Senhoras de Fátima” espalhadas por Portugal, sempre acreditaram na sorte que protege os audazes, no canto da sereia, na bondade da sorte de uma raspadinha, na alegria tamanha que todos os domingos lhe pode trazer o seu clube favorito de futebol, na capacidade transcendente das bruxas, no poder efetivo dos curandeiros, endireitas e adivinhos, na banha da cobra, e, que, portanto, está totalmente preparado para acreditar num qualquer AV que concentra em si tudo o que eles sempre estiveram dispostos a acreditar, porque sabem de antemão que os de Lisboa apenas ouvem a linguagem eleitoral quando ela representa grandes massas de votantes. E embora esteja estudado que quem vota nestas soluções são eleitores com baixa educação e literacia, eu não os considero ignorantes ou mal-educados, nem sequer analfabetos, porque os parlamentos nórdicos, escandinavos e centro-europeus estão cheios de bem-educados, de bem formados e doutorados neonazis e nacionalistas de extrema-direita, que sabem bem aquilo que defendem. Pois eu prefiro os que votaram agora AV, mas que ainda consideram a honra o mais alto dos valores que um homem pode arvorar. Afinal nada mais são que uma multidão de descontentes a manifestar-se, sem conexão entre eles. Dão, portanto, uma resposta completamente errada, a problemas bem concretos e reais!

Especula-se que no Alentejo tenha havido eleitorado do PCP que desta vez votou AV, mas e em Trás-os-Montes, em quem votavam antes os eleitores que desta vez deram o segundo lugar a AV?!

Como muito bem diz o meu grande amigo Fernando Calado: “Abril chegou e os carrascos fugiram para o Brasil.… acoutaram-se no silêncio... resistiram. O tempo passou em galope de cavalo... as memórias esmoreceram... e poucos se lembram dos horrores da polícia de estado... da guerra... do martírio... do pensamento amordaçado... poucos se lembram dos pobres andrajosos... dos ciganos que deambulavam pelos povoados e pela fome... das famílias que repartiam uma sardinha para três  pessoas... dos trabalhadores que mendigavam uma jeira por uma côdea de pão... da saúde e educação somente para minorias abastadas... dos tontinhos que estendiam a mão  à caridade... das aldeias vilas e cidades sem saneamento, de cântaro no braço para ir à fonte... da longa noite da candeia... dos idosos sem pensão... do país sem Serviço Nacional de Saúde... da fome de imensas famílias... do mourejar de sol a sol amanhando a terra ... ceifando o centeio... cozendo o pão... remendado a roupa... lavando no rio... das mulheres obedientes e domésticas sem direito ao voto... das eleições de partido único... do assassinato de Humberto Delgado... poucos se lembram... e os carrascos acordaram da longa hibernação... a democracia os tolerou e em breve regressarão em esplendorosa alvorada... cavalgando a falsa moral e os bons costumes...vitoriosos!”

 

E a minha crónica já vai longa, escrevo como se estivesse a rezar para esconjurar os males que me doem, que doem à minha terra, que doem à minha gente.

Não nos podemos admirar quando trilhamos um determinado caminho e depois chegamos a um certo destino: a este triste destino! Porque já estávamos avisados da destruturação partidária clássica que ocorreu nos EUA, no Brasil, na Itália, França, Espanha, e um pouco por toda a UE. E sabendo já estar provado que a exclusão e reação radical a estes partidos não funciona, porque limita a democracia, também não funciona a sua inclusão e normalização, porque mina a democracia, espero não desiludir ninguém ao afirmar da minha convicção íntima que este fenómeno apenas se poderá combater recorrendo ao fortalecimento da nossa democracia europeia social-democrata-liberal, e no caso concreto de Portugal, lutar com todas as forças para reunificar os dois ‘países’ que temos dentro do nosso retângulo: litoral e interior. Se milagres houvesse, já todos o saberíamos!

O Secretário-geral da ONU António Guterres, diz que precisamos de uma ação global coordenada, à escala da ameaça que enfrentamos, para construir uma aliança contra o crescimento e propagação do neonazismo e da supremacia branca, para combater a propaganda e a desinformação. Eu também acho isso, mas acho sobretudo que devemos aproveitar as sábias palavras de Pedro Abrunhosa para “fazer o que ainda não foi feito” e que precisa mesmo ser feito. E todos sabemos…

 

E a fechar o terço de hoje, o desencantado da romaria que faz a volta do caminho velho que o levará de novo à pacatez da sua aldeia, avista os abutres a alimentar-se da morte no meio do descampado. Agacha-se, escolhe uma pedra a jeito e arremessa-lha, sabendo de antemão que nunca lhe acertará! Uma pedra arremessada que bem pode ser o poema do Uruguaio Eduardo Galeano dedicado aos excluídos, que quero aqui dedicar aos territórios do Interior esquecido.

 

“LOS NADIES

Sueñan las pulgas con comprarse un perro y sueñan los nadies con salir de pobres, que algún mágico día llueva de pronto la buena suerte, que llueva a cántaros la buena suerte; pero la buena suerte no llueve ayer, ni hoy, ni mañana, ni nunca, ni en lloviznita cae del cielo la buena suerte, por mucho que los nadies la llamen y aunque les pique la mano izquierda, o se levanten con el pié derecho, o empiecen el año cambiando de escoba.

Los nadies: los hijos de los nadies, los dueños de nada.

Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos:

Que no son, aunque sean.

Que no hablan idiomas, sino dialectos.

Que no profesan religiones, sino supersticiones.

Que no hacen arte, sino artesanía.

Que no practican cultura, sino folklore.

Que no son seres humanos, sino recursos humanos.

Que no tienen cara, sino brazos.

Que no tienen nombre, sino número.

Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local.

Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.”

 


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