Ana Soares
Gravidez de risco, à lupa
Depois da crónica que escrevi sobre o politicamente correcto na gravidez, recebi algumas mensagens de quem faz o favor de ler o que escrevo (e a quem sempre agradeço!) a lançar-me o desafio de escrever sobre o que muitos consideram o abuso de recurso à gravidez de risco que se verifica actualmente. Percebo a polémica do tema e aceito de bom grado o repto que dividirei em duas partes: uma referente ao enquadramento legal/social da incapacidade temporária para o trabalho por risco clínico durante a gravidez e outra mais pessoal, de quem já passou (duas vezes) pela situação.
A “baixa” por risco clínico durante em gravidez deveria ter lugar apenas quando estão em causa questões que representem risco clínico para a grávida ou para o nascituro.
Em primeiro lugar, dizer que acredito que a maioria dos profissionais de saúde exerce a sua carreira com rigor e pautando-se pelas normas legais e deontológicas, donde apenas certificam a incapacidade de trabalho que e quando existe. E, também por isto, me choca a diferença de regimes existente quando a incapacidade é verificada por um médico do SNS ou um médico de uma instituição privada hospitalar. Pelo contrário, em nada sou surpreendida pelos números de profissionais do próprio SNS a quem é atribuída incapacidade por risco clínico durante a gravidez. Porque considero que não há profissionais de primeira e de segunda, acho que um regime uno e simplificado seria a solução, com recurso – isso sim - a inspecções e verificações reais e requalificadas.
No entanto, todos nós conhecemos casos em que a grávida foi para casa no final da gestação ou que, auferindo subsídio de desemprego, lhe vê ser passado a declaração de incapacidade para o trabalho por risco clínico durante a gravidez, sem que tal tenha justificação médica. Refira-se que, caso a grávida esteja a receber prestações de desemprego, estas ficam suspensas enquanto estiver a receber o subsídio por risco clínico, sendo posteriormente retomadas e ficando ainda dispensada do cumprimento dos deveres para com o centro de emprego. Ou seja, na prática, acaba por receber subsídio estatal durante mais tempo.
Percebo moralmente muitos dos argumentos que estão na base da concessão do subsídio por risco clínico durante a gravidez, quando a tal não haveria lugar. Compreendo que no actual contexto económico-financeiro, o médico deite mão a um recurso disponível para que a Mãe desempregada fique amparada durante mais tempo, tal como percebo que, no final da gestação e tendo um trabalho particularmente desgastante a nível físico e possivelmente com outras crianças em casa, o médico possibilite que a gestante fique em casa, sem ser prejudica remuneratoriamente.
Percebo, mas não concordo. A verdade é que, em ambos os casos e em tanto outros, se trata de uma fraude, que coloca em causa a sustentabilidade da segurança social e é, em última análise, ilegal e atentadora dos Direitos de quem, por infelicidade, tem mesmo que fazer uso da “baixa” por risco clínico durante a gravidez.
No entanto, como disse, ambos os exemplos que dei são casos em que percebo que a gestante, futura Mãe, precisa de ser protegida de um modo particular e que não encontra enquadramento no actual regime. E são estes casos que acho que urge trazer para o debate político e social, pois importa que os mesmos sejam contemplados legalmente – porventura não exactamente igual ao risco clínico durante a gravidez porquanto são realidades diferentes – mas diferente da regra geral.
Mas a gravidez de risco tem também um lado emocional, vivido quotidianamente. Quando existe uma situação real de risco clínico durante a gravidez (e, como disse, acredito que são a grande maioria) não haja dúvidas que a gestante não a deseja e serei o mais objectiva que me for possível, atendendo a que conheço bem esta situação. Se a gravidez é um estado dado a incertezas e ansiedade, a gravidez de risco multiplica umas quantas vezes esta realidade. A grávida, tantas vezes confinada à cama ou ao mínimo movimento possível na sua habitação, acaba por ter quase todo o tempo para pensar no motivo que fez com que a sua gestação fosse de risco e, com a ajuda das hormonas, a equacionar tudo o que não deveria fazer e a consultar o “Dr. Google” com mais frequência do que a vontade de ir à casa de banho, entrando numa escalada de medo e insegurança quanto ao seu futuro e do seu bebé. Por outro lado, mais das vezes, a gravidez de risco impede a futura Mãe (ou já Mãe de outras crianças) de desempenhar normalmente a “sua parte” das tarefas domésticas e familiares, sentindo que está a sobrecarregar quem com ela vive, o que cria uma sensação de dependência e insatisfação consigo mesma perturbante (e falo por experiência própria de quem nunca saberá agradecer o suficiente ao Marido que tenho e que chegou sempre a todo o lado).
Mas o confronto que a grávida de risco sente entre a gravidez que vivencia e a que idealizou repercute-se também em outros aspectos banais como, a título de exemplo, o impedimento de ir às lojas de puericultura comprar o tão sonhado enxoval ou o facto de alguns familiares e amigos não perceberem o que representa na cabeça da gestante o estar de repouso (e , tantas vezes, também o verdadeiro risco clínico) e se todos conhecemos os conselhos e opiniões que chegam em catadupa quando há gravidezes ou crianças pequenas, acreditem que se reproduzem ferozmente em gravidezes fora do comum. O que, a somar à insegurança que muitas grávidas sentem com as mudanças inerentes à gravidez (e a muitas outras que se verificam nestes casos como a necessidade de abstinência sexual), em nada contribuem para concretizar a máxima “mente sã em corpo são”. E não haja dúvida que a nossa cabeça é essencial para ultrapassar com sucesso a gravidez de risco e o tempo que se lhe segue, pelo que é importante falar com quem compreende a situação, reforçar o relacionamento sem tabus com quem connosco vive e fazer uso do que de bom têm as novas tecnologias como os grupos de outras grávidas na mesma situação.
Este é um assunto sobre o qual muito mais haveria a dizer. Com o actual contexto de envelhecimento populacional, sobretudo em regiões do Interior como a nossa, importa que estes assuntos sejam discutidos com seriedade e profundidade, indo para além das belas manchetes para a comunicação social. Porque, continuo a acreditar, a taxa de natalidade que se verifica não é motivada por falta de vontade de ter Filhos, mas pela real dificuldade, ou mesmo impossibilidade, das Famílias constituírem os núcleos que desejam. E, se não é para isto que existem leis e Estado Social, para que será?