Chrys Chrystello

Chrys Chrystello

Há 50 anos, Partida para Timor, Chegada a Dili em Set 1973

512.1. FOI HÁ 50 ANOS. PARTIDA PARA TIMOR, CHEGADA A DILI SETº 1973

Éramos um grupo díspar de seis pessoas naquele voo (19 setembro 1973), a primeira vez que tropas portuguesas iam para Timor de avião, rumo ao Oriente exótico e desconhecido, mas a primeira noite seria passada em França onde dormimos. A primeira noite em Montmartre, num hotel económico, a centenas de metros do trottoir onde as senhoras da noite tinham o métier. As galerias Lafayette eram um magneto a atrair as pessoas em busca de moda, perfumarias, comida ou souvenirs. A memória não ajuda. Creio que foi, mas não tenho registo, no Antin Trinité. As Galerias Lafayette em frente. Muito perto da “Opera”, do Louvre e de Montmartre. O hotel de 46 quartos rodeado de bons restaurantes, teatros e cinemas. Toda a animação noturna que se podia desejar.

Como conhecia a cidade levei uns camaradas (Gomes, Rebimbas e outros cujo nome perdi) para jantar num pequeno bistro. Pude fazer as honras de connaisseur (Borgonha e Bordéus avisando-os de que eram fortes e não estando habituados, corriam o risco de não acordarem na manhã seguinte). Jantamos mesmo ao lado do hotel (Hotel Antin Trinité Opéra Paris, nº 74, rue de Provence), a curta distância do Boulevard Haussman.

74, rue de Provence 75009 Opéra Paris France

As mesas de xadrez, vermelho e branco, evocavam tabernas portuguesas. O vinho era servido em carafes de litro que se esvaziavam rapidamente. Os pratos servidos eram de tamanho normal, comida abundante, e não enormes pratos com uma amostra de comida que caraterizam a rapinagem da "nouvelle cuisine française" (nem sei se esta já tinha sido inventada). Na manhã seguinte havia o pequeno-almoço típico: café, chá ou chocolate, sumos de frutas, cereais, iogurtes, queijo, fiambre, Viennoiseries, pão com manteiga, compota ou mel.

Quando me levantei, já todos estavam no autocarro que nos iria levar ao aeroporto de Orly. Eu a fazê-los esperar e desesperar, durante mais de uma hora, indeciso, observando-os da janela do 1º andar. Ponderava se os 16 contos que levava dariam para sobreviver seis meses em Paris. Era o momento de aceitar o destino ou lutar contra ele e a tropa que me apavorava. Sim, já pensava em desertar. Inicialmente, considerei que o pai (apesar de frustrado por não ter sido admitido para o serviço militar por ser demasiado magro) me poderia apoiar financeiramente. Idealizava uma fuga escandinava, Países Baixos ou França. Nem o meu pai nem o meu padrinho e mecenas (administrador do Banco Totta & Açores) se haviam mostrado dispostos a condescender. Adorava Paris. Já lá estivera. Tinha um medo irrefreável do desconhecido nos orientes exóticos. Tantos conhecidos meus haviam desertado. Pois bem foram esses pensamentos que me ocorreram durante a hora em que não abri a porta a ninguém nem atendi o telefone interno que tocava incessantemente. A minha avó paterna sempre me disse que como nativo do Dia do Anjo da Guarda nada de mal me aconteceria. Estava convicto de que o pai consideraria a fuga desonrosa. Dispus-me, por fim, a partir. Resolvi descer as escadas, para alívio dos restantes e consternação do senhor Neves, representante e guia da Air France, que temia perdermos o voo do 747.

Apenas o capitão Manuel Alberto Botelho dos Santos Clara (ficaríamos amigos, um dos poucos militares com quem me dei socialmente após o SMO ((Serviço Militar Obrigatório), que sempre respeitei e de quem me tornei amigo apesar de não o ver desde 1982 ou 1988) teve direito a primeira classe pois os restantes oficiais milicianos estavam destinados à classe económica… exceto eu que estava destinado (como sempre) a voos bem mais altos.

Com a habitual descontração, e umas palavras bem sussurradas em Francês, aliadas a um sangue latino quente, conseguiram que uma simpática hospedeira me levasse a mostrar o bar no 1º andar do Boeing 747 onde passei quase toda a viagem a beber champanhe francês e a apreciar as vistas magníficas do andar de cima do avião. Até aqui a viagem fora ótima na companhia da hospedeira que passou mais tempo comigo no luxuoso conforto do primeiro andar do que nas funções dela para espanto do Santos Clara que estranhava a minha presença. Não encontrei vestígios das cartas descritivas que escrevi, mas ficou o registo poético da primeira ida ao oriente:

 Paramos em Telavive onde entraram tropas israelitas (armadas até aos dentes) que revistaram tudo e todos. Até se deram ao trabalho de desmontar a Braun, máquina de barbear elétrica, em busca de explosivos, e espremeram o topo da pasta de dentes…. Foi a primeira vez que vi medidas de segurança semelhantes às que passariam a vigorar, trinta anos depois, após as Torres Gémeas em 9/11 (11 setembro 2001). O cenário de guerra, aviões de combate na pista. Faltavam duas semanas da Guerra dos Seis Dias.

Em Banguecoque, pacata cidade asiática sem turismo de massas, mudou a tripulação e eu perdi os meus privilégios e a companhia simpática da gaiata hospedeira parisiense. Na pista ruminavam (nessa época) búfalos de água que era preciso afugentar à chegada de cada avião. Naqueles tempos, a capital do antigo reino do Sião era uma pacata urbe. Aterramos em Denpasar, capital da ilha de Bali, apavorados com o tamanho das baratas voadoras que pisávamos e o ruído delas ao serem esmagadas, enquanto andávamos rumo ao terminal, por entre o calor abrasador e húmido, semelhante ao de Banguecoque.

Dali partimos num pequeno bimotor de oito lugares para o aeroporto “internacional” de Baucau (o de Díli não estava operacional por qualquer razão). Apesar da beleza da trovoada e dos relâmpagos, que não cansavam de iluminar milhentas ilhas vulcânicas do arquipélago a viagem fez-se sem grandes sobressaltos. Tanta ilha, tanto mundo por descobrir sob a luz dos relâmpagos sobrevoando o arquipélago (à data pensava-se que a Indonésia teria 13 mil ilhas, hoje sabe-se serem mais de 18 mil).

EURASIAMENTE À VOL DE 747B

I DA EUROPA AO ORIENTE-DO-MEIO

alando de paris logo passamos o azur da côte

sem escândalos nem coroas arruinadas

escarpas e praias despidas de homem

nove mil metros restituem à natura

           impolutas ficções

(depois, o mediterrâneo é um lago semeado de grécias

logo a seguir à itálica bota

corfu vigia em tons de ocre

em tempos creta foi nome de ilha

         na mitologia de zeus).

da turca ankara sobrevoámos izmir

mandam-nos regressar

       estamos no oriente-do-meio

a guerra volta dentro de dez dias

        e só dura seis

telavive é um amontoar branco de colinas

                  um algarve deslocado

na planície árida velhos aero-despojos

entram comandos auto-metralhadorizados

    importunam

    espiam

    revistam

obrigados e silentes

   somos a abrasadora quietude do jumbo

partiremos

      sempre mais tarde que previsto

no deserto amarelecido qual alentejo

           repousam monstros de muitas lutas

nos kibbutz labutam formigantes sionistas

- este povo traz consigo o estigma

   da aniquilação

   própria e alheia

    cheira a morte. -

     cheiram a morte!

II. A TERRA DOS PERSAS

embaixo sorriem sombras

minúsculos pontos rasgando a treva

quilómetros de fantasmas ancestrais

casas talvez brancas

  bairros de adobe

avenidas ocidentais

  mesquitas

na poeira do cansaço

     um nome semimágico

teerão

a história do xá

             um povo sem voz

    à espera

o silêncio compungido do imperialismo

aterrámos lado a lado com estrelas ianques

estranho porto no coração do petróleo

persépolis foi há 2500 anos

              o mito de alexandre

                                                 hoje.

III INDIANA UNIÃO

a meu lado um saxónico cacareja

o nojo imenso da miséria

            suja imundície

estamos em delhi, a nova

             capital das castas

ghandi morreu há muito e era mahtma

indira é mulher e déspota ao que dizem

país estranho de contrastes e civilizações

dele guardo esconsas imagens

                     fome e pobreza

estamos no subcontinente da morte lenta

aliviado respiro

             ao deixar o hindustão

IV. NO REINO DO SIÃO

é já dia

       os arrozais me espreitam

verde o país

                  castanho é banguecoque

em plena pista búfalos pachorrentos

        a banhos de lama

camponeses debruçados

         nos pântanos colhem o arroz

pequenas árvores dividem o asfalto

chove lá fora

                 sob 42º C de sol

lufadas de calor húmido nos penetram

densa respiração no ar por condicionar

lentas formalidades num inglês arrevesado

a vida possui aqui uma lenta ritmia

todo o tempo nos espera

nas autoestradas camionetas com jovens

               patrulhas militares

todos os veículos se cruzam dos lados todos

coloridos templos incrustados de pedrarias

ouro maciço de budas

descalços com cintos sagrados

                      nos embasbacámos

este o país do mistério

       igrejas e fortes portugueses

memórias de tratados reais siameses e lusitanos

o mercado flutuante é uma cidade imensa

longos canais pútridos nesta veneza oriental

sente-se o aroma do dólar nas ruas

        por entre golpes de estado adiados

a cem quilómetros se combate

                     é o apelo do futuro

os thais são simpáticos e ardilosos

milhares de anos de sabedoria a explorarem europeus

os preços função da nacionalidade

no faustoso erawan hotel

            o luxo grandiloquente oriental

                       a sofisticada comodidade do ocidente

uma volta rápida pela cidade dos mil-e-um-templos

para lá das faces mudas

       se encerra

   o mistério

    o convite

     voltarei um dia.

V. TIMOR

timor cresceu cercado

          lendas que a distância empolgou

o sonho

 a quietude

  as 1001 noites do oriente exótico

                 o sortilégio dos trópicos

para o europeu

               chegar era já desilusão

desprevenido

           sobrevoa estéril ilha

    montes e pedras

agreste paisagem sulcada

             leitos secos

                                abruptas escarpas

terra sem marca de homem

esparsas cabanas de colmo

              será isto timor?

o avião desce o vazio em círculos

em vão os olhos buscam a pista

por trás de um montículo imprevisto

        se vislumbra o “T”

e a torre de controlo dos folhetos de propaganda

             nunca existiu (naquele formato)

a alfândega é o bar

   a sala de espera

           sob o zinco e o colmo

isto é baucau

           aeroporto internacional

          a vila salazar dos compêndios

                  que a história esqueceu

uma turba estranha se amontoa

    à chegada do cacatua-bote

    o patas-de-aço

esta a cerimónia sagrada do deus estrangeiro

     descendo dos céus

dia de festa para os trajes multicoloridos

o contraste do castanho de sóis pigmentados

cinco da matina

                 e é já o pó e o calor

o espanto mudo nas bocas incrédulas

as formalidades aqui com sabor novo

          espera lenta e compassada

         séculos de futuro por viver

             antes que ele venha

       antes não venha

num barracão zincado uma velha bedford

                    de carga com caixa fechada

vidros de plástico sob o toldo puído

         pomposo dístico colonial

          carreira pública baucau-dili

picada em terreno plano

          mar ao fundo

baucau

       cidade menina por entre palmares

     densa vegetação tropical

connosco se cruzam estranhos homens de lipa

                          galo de combate ao colo

                              entre torsos e braços nus

das ruínas do mercado se evocam

      desconhecidos templos romanos

estrada nº 1 até díli

sulcam-se abruptas as encostas

    ao mar sobranceiras

     ali se adivinham cristais multicolores

em lugar de pontes se atravessam ribeiras

       enormes

     leitos secos

o tempo as converteu em estradas de ocasião

pedregoso solo

               cores indefinidas

                                           castanhos e verdes

palapas dissimuladas na paisagem

             imagens tristes de pedras e montes

baías primitivas

               inconquistas

praias de despojos e conchas

                 paraísos insuspeitos

as gentes de sorrisos vermelhos

    assusto-me

    não é sangue nas bocas gengivadas

masca, mescla de cal viva e harecan

placebo psicológico da alimentação que falta

um sorriso encarnado esconde a fome

súbito

      por paisagens que só a memória

                 sem palavras descreverá

eis díli

 a capital

larguíssima avenida semeando o pó nas palapas

casas de pedra com telhados de zinco

na ponta leste chinas e timores

   partilham a promiscuidade da pobreza

díli

 plana e longa

a vasta baía antevendo imponente

     o ataúro ilha

um porto incipiente

                      a marginal desagua no farol

construções coloniais pós 1945

   da guerra que ninguém quis

   dos mortos que os japoneses quiseram

   da neutralidade do país mãe calado e violado

albergam chefes de serviço

altas patentes militares

       sem guerras para lutar

    sem movimentos libertadores das gentes

quinze quilómetros de asfalto

                  três casas dantes da guerra grande

aeródromo em terra batida

               um jipe de afugenta búfalo

a rua comercial atravessa díli senhora

             de leste a oeste

                      espinha dorsal

o centro

     o palácio das repartições

                          o do governo

perto um museu

                 o seu nome ostenta o vazio

riquezas sem fim

                 seus governadores exportaram

             patriotas

colonizadores de séculos com nada para mostrar

um museu morto

                  dois sinaleiros nas horas de ponta

              ociosos às portas dos cafés

à noite transfiguram-se

                  os bas-fond

                o texas bar

                                    da prostituição às slot machines

o submundo

               a vida underground

afogar esperanças em álcool

                 sonhos há muito perdidos nunca sonhados

restaurantes poucos

    melhor comida a chinesa

bares espalhados pela cidade

militares e álcool para calar distâncias

               um portugal dos pequeninos

                       longínquo

               cada vez mais

                  esquecido

                                   nunca

                         perdido.

1973 numa cidade sem vida

                         morrendo nas cinzas

      próprias de cada noite

           por entre o silêncio e a voz triste dos tokés

o calor putrefacto

  por entre o voo alado das baratas gigantes

carros poucos

              de dia só do estado

motocicletas pululam por entre viaturas oficialmente pretas e verdes

esperando mulheres de oficiais

                     às portas dos cabeleireiros

                     do liceu

militares a pé

             em berliets ou unimogs

chineses muitos

díli é isto

           a desolação

na parte alta da cidade o complexo militar

barracas insalubres

   sob a sombra dos hospitais

               um civil um militar

                                    fresco e verdejante vale

triste esta cidade

pretensamente euro-africana

palapas marginando ruas

              nelas vive o timor

     sem água nem luz

dez ou quinze filhos

    que importa

      a miséria é só uma e a mesma?

esta “a terra que o sol em nascendo vê primeiro”

aqui as imagens

                 e são já história

   não se repetirão

aqui não daremos testemunho

                   como transfigurar

                    colónias pacíficas

                         em palcos de guerra.

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2ª parte

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512.2. FOI HÁ 50 ANOS A CHEGADA A TIMOR


Timor esteve sempre envolto em lendas e contarelos que só a distância pode criar. Em Portugal, Timor era um sonho, a calma quietude das mil e uma noites, o Oriente exótico e o sortilégio dos trópicos. Ao chegar, um Europeu podia sentir a desilusão. Sobrevoava a ilha, estéril, povoada por montes e pedras. Vimos a paisagem desoladora, árida e suja. A primeira impressão fora de repulsa, era pior do que tudo o que se pudesse imaginar. Mais atrasado, inculto, selvagem e rude que o mais retrógrado de África. Desolador. Um primitivismo assustador. Consternava. Tecnologicamente virgem acabado de sair do neolítico. Por desbravar, por conquistar, por colonizar. Sem sinais de vida, sem marca de civilização humana. 

Eram quatro ou cinco da manhã e o calor já apertava. Já ia alto o sol. Uma surpresa muda acompanha os esgares dos recém-chegados. Timor é isto, casas esparsas de bambu sob as asas do bimotor. O visitante questiona-se: "Como é possível? Será isto Timor?” O avião desce em círculos concêntricos. Os passageiros - inquietos - procuram em vão o aeroporto internacional que teima em não se mostrar. De súbito, por detrás da colina que ninguém anteviu, numa rotação brusca de 180º, aí está o pequeno "T" da pista. Cenário rústico intersetado por ribeiras secas. 

  aeroporto 

Altas escarpas abruptamente voltadas ao mar, uma terra devastada desde a sua criação. Ecologicamente virgem. Arribas alcantiladas, a pique sobre um mar de corais brancos. A imponente torre de controlo dos panfletos turísticos não se vislumbra. Existe uma pequena torre, mas não era a que vinha fotografada nas imagens do panfleto turístico que me deram antes de partir. Os edifícios poeirentos em teto de colmo eram a aduana, o bar e o salão de embarque. Este é o aeroporto internacional da Vila Salazar que só existe nos textos de geografia dos liceus portugueses (nos livros coloniais pois é conhecida como Baucau). 

Aqui, as formalidades têm um novo sabor, semelhante ao lento, mas rítmico compasso de espera das pessoas que os antecipavam, como se tivessem séculos de vida para viver. Uma estranha turba se aglomera. Este é o espetáculo sempre indescritível da chegada da "cacatua bote” (a grande catatua) ou "patas de aço". Uma cerimónia de adoração a um deus estrangeiro descendo dos céus. Assistem à chegada como se fosse o começo de uma nova religião, ou uma manifestação sagrada. As vestes multicores contrastam com os muitos sóis a que os séculos as expuseram. São cinco da matina e quentes, e húmidas. Poeirentas e calorentas. 

Meteram-nos na traseira da velha carrinha Bedford (Série S, uma RL dos anos 50?), com bancos de suma-a-pau e toldo de lona, abrigando do sol os velhos bancos de madeira. Ostentava o pomposo letreiro de Carreira Pública #1 Díli - Baucau. A sinuosa estrada de montanha volve-se para o mar, descendo lentamente do aeródromo. Rumamos à cidade menina, Baucau, escondida entre as folhas dos palmeirais e luxuriantes florestas tropicais. Pela traseira da camioneta vislumbram-se novas imagens, mas não restam dúvidas, era uma terra morta à nascença. 


Cruzamo-nos com homens vestidos de saia (aprenderei que se chama “lipa”), estreitando galos de combate entre os braços nus e o torso, enquanto caminham. Baucau tem algumas casas de pedra. Sobressaem por entre as de terra e adobe. Havia o aspeto exótico da população colorida. Das ruínas do mercado evocam-se templos romanos desconhecidos. Sempre tive esta imagem. Aliás, a imagem que perduraria para sempre na mente era a de Baucau como um templo romano em ruínas. Nunca mais a voltaria a ver. Uma curta paragem para uma sandes e limonada na messe do quartel-general local. Mesmo em frente, uma piscina, subitamente deslocada no tempo e no espaço. De regresso à estrada nº 1, mal se vislumbrava o caminho por entre a densa vegetação. E eram tantos os precipícios sobre a costa alcantilada! A meio da viagem, que parecia durar mais de 400 km, paramos para outra refeição, mais ligeira, no pequeno aquartelamento do Manatuto. 

 A picada de montanha, por vezes, aproxima-se tanto das ribanceiras e do abismo que os corações entram em animação suspensa por entre ais reprimidos. Ao longo do caminho se transpõem leitos secos de ribeiras que o tempo, a incúria dos homens e os elementos, converteram em estrada de ocasião. O chão de gravilha, pedregoso, a cor indefinida entre o castanho e o verde, as casas de colmo (aprendi que se chamam “palapas”) disfarçadas por entre a vegetação, tudo serve para propiciar uma imagem de pedras e colinas. Estradas herdadas da ocupação colonial nipónica na 2ª Grande Guerra. As baías, primitivas e inconquistas por barcos de qualquer tamanho ou tipo. Praias de conquilhas, caranguejos e destroços das ondas, revelando paraísos insuspeitos. O éden pode ter sido aqui.

É difícil ver os nativos com os seus eternos sorrisos abertos da cor de carmim. Estupefactos, atónitos, espantados. Não é sangue que jorra dos lábios, apenas a masca: uma mistura de cal e areca (harecan em Tétum). Mastigá-la é um placebo psicológico para a comida que não existe. Em janeiro de 1998, recordarei essa imagem ao ouvir na rádio o José Ramos Horta a apelar à solidariedade internacional para debelar a fome que grassa no território. Os sorrisos vermelhos escondem fomes de séculos. Não é de hoje, nem de ontem, nem do tempo português, japonês ou indonésio. É eterna esta fome.

De súbito, após passar e deixar para trás locais e aldeias que só a memória despalavrada pode recordar, eis Díli. Afinal, eram apenas 212 km e sete horas mais tarde, uma viagem fulminantemente rápida. Uma avenida demasiado larga, espalha a poeira pesada por sobre o colmo das palapas vizinhas e poucas casas de cimento e teto de zinco. Ao entrar em Díli, por leste, chineses e os timorenses partilhavam a promiscuidade da falta de estruturas urbanas adequadas. 

Chegamos à messe de oficiais era meio-dia. Ia alto o sol. Eu e o capitão Santos Clara vestidos de blazer azul. As calças, à partida brancas, à chegada cor de duna. 

Díli é uma planície. Espraia-se por um mar espelhado como um lago. Uma baía majestosa acentuada pela sombra imponente da vizinha ilha do Ataúro. Um porto incipiente abriga a pequena e anacrónica lancha onde flutua a esfarrapada bandeira portuguesa, ao longe destroços naufragados junto à superfície de barcaças japonesas da 2ª Grande Guerra. A longa avenida acompanha a marginal, terminando no bairro residencial do Farol de vivendas coloniais, construídas depois da 2ª Grande Guerra, abrigam chefes de departamento e escalões superiores do exército colonial. Por esta época, Díli dispunha de 16 km de asfalto esparsamente distribuídos por poucas estradas e ruas da capital. Três casas apenas sobreviveram à devastação nipónica da Grande Guerra. No aeródromo a que pomposamente chamaram aeroporto de Díli, quando é dia de São Avião, um Land Rover limpa a pista dos pachorrentos búfalos, das vacas balinesas e dos porcos selvagens. A principal artéria comercial atravessa Díli de ocidente a oriente, pelo centro, espinha dorsal da capital. Ali se alberga o Governo (imponente edifício pomposamente denominado Palácio) e o Museu cujo nome ostenta o vazio de todos os tesouros exportados por anteriores governadores e colonizadores, ao longo dos séculos. Um museu vazio, dois polícias sinaleiros nas horas de ponta, e poucas pessoas pachorrentamente sentadas nas esplanadas. Bares, como o "Texas" e a "Tropicália", onde os soldados e a bebida silenciam a progressivamente maior distância de Portugal. É ali que, à noite se podem encontrar os bas fonds de Díli. Não só as prostitutas, mas as máquinas de póquer e as slot-machines. O submundo, a vida subterrânea, o moroso afogar de esperanças e sonhos há muito olvidados. Uns, poucos, restaurantes servindo comida chinesa. Díli, setembro 1973, uma cidade sem vida, morrendo devagar nas próprias cinzas (que se irão acender, na realidade, em 1999), por entre o silêncio e a triste voz rítmica dos tokés, o calor pútrido e o voo alado das desmesuradas baratas voadoras. 

Durante o dia podiam-se ver alguns, poucos, carros particulares, e muitas viaturas oficiais com a sua típica cor negra. Inúmeras motorizadas ruidosas circulavam por entre os jipes do exército, conduzidos pelos militares. Esperam pacientemente em frente ao liceu ou ao cabeleireiro, pelas esposas, tornadas professoras de liceu, dos oficiais do exército colonial português. Estarão mesmo no liceu, na escola primária ou no cabeleireiro? O pessoal militar, a pé ou nas Berliets e Unimogs. Por entre os timorenses, veem-se chineses. Díli é isto, a desolação. A devastação viria mais tarde. Nas colinas, num local para esquecer, relíquia de uma guerra perdida, estavam as instalações militares com o seu quartel-general e os barracões de zinco, insalubres e insanitários. Pode ter sido um ótimo local duzentos anos antes, bem abrigado pelas montanhas circundantes. A sua localização estava fora do tempo e do espaço. Quinhentos metros acima do nível do mar num local proeminente, abrigado pela maciça flora, estavam os dois hospitais. Um grupo de edifícios mais modernos para o hospital civil, outro, mais antigo, para o militar dispondo de dúzia e meia de camas. 

Esta cidade pretensamente europeia é triste. As palapas progridem, crescendo para os passeios quase inexistentes, albergam os timorenses que vivem sem luz elétrica, sem água encanada nem esgotos. Dez ou quinze crianças, em cada família, brincando em volta alheias a tudo. O ciclo do caranguejo, não é, meu caro Josué de Castro? Que lhes interessa se a miséria é a mesma, será sempre a mesma? " Aqui, Onde O Sol, Logo Em Nascendo, Vê Primeiro ", como a insígnia oficial proclama bem alto do escudo e brasão de armas do, então, Timor Português. 

Com isto, lego as imagens e as palavras. Fazem parte integrante da História. Não se irão repetir num milhão de anos. Isto presenciei: como transfigurar pachorrentas colónias do Pacífico em cenários de guerra e morte. Como oficial miliciano de Administração Militar colocado na Intendência, e não como um homem de armas profissional, senti-me como muitos que seriam seguidores da Junta de Salvação Nacional em Lisboa, forçado a três anos de solidão na remota, mas pacífica terra. Tive sorte, ao ir para Timor, pois não fora escolhido para dois anos de luta contra os movimentos de independência africana (Angola, Guiné ou Moçambique).


 Chrys Chrystello, Jornalista,

Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]

  [email protected],

Diário dos Açores (desde 2018)/ Diário de Trás-os-Montes (2005)/ Tribuna das Ilhas (2019)/ Jornal LusoPress, Québec, Canadá (2020)/ Jornal do Pico (2021)



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