Vítor Batista

Vítor Batista

Interioridade #2: Algo de errado (não está certo)!

Trás-os-Montes vive momentos de grande contradição e apetece dizer que “não bate a cota (ou bota, na versão derivada) com a perdigota”. Trás-os-Montes é hoje uma região com modernidade e acessos comparáveis aos níveis europeus, que contrastam numa incapacidade de travar um despovoamento e um envelhecimento da sua população. Uma “doença” crónica que se alimenta de uma ação de gestão do território acomodada e focada apenas no presente, ao que chamaria de uma ação de gestão do território baseada numa abordagem “terapêutica de cuidados continuados e paliativos” do território. Uma estratégia ou melhor uma ausência ou quase ausência de estratégia,  que só atua no alívio dos sinais e dos sintomas (naquilo apenas se sente e se vê) sem se preocupar com as causas da “doença”, por se achar que já não vale a pena, numa resignação ou incapacidade de lidar com a “doença”, por exigir uma terapia holística.

Esta contradição  é bem caracterizada num artigo do Público, do passado dia 26 de março de 2019, com o título “Trás-os-Montes e Alto Douro: espelho de um país cada vez mais moderno e também vazio de gente”, o mote que me empurrou para este tema, que há muito não sabia por onde lhe pegar. Basta o lead do artigo para percebermos que “Algo de errado não está certo”: “Viver hoje em Trás-os-Montes e Alto Douro já não tem nada de desterro. A região modernizou-se e deixou de poder queixar-se da falta de acessibilidades. Hoje, o grande problema é mesmo o despovoamento e o envelhecimento da população, …”. Na verdade, a perda de população é um problema transversal ao território nacional e um problema maior para Trás-os-Montes, pois “…um país, para repor a sua população e crescer, deve manter uma taxa de fertilidade de 2,1 filhos por mulher. Em Trás-os-Montes, é menos de metade desse valor. Menos gente significa menos potencial de riqueza. Em regra, cerca de 80 por cento da riqueza gerada na economia advém do capital humano”.

Tudo isto nos faz questionar o leque de investimento municipal e central das últimas três décadas de governação.  Perguntamo-nos se todas estas infraestruturas e equipamentos municipais foram as escolhas certas, se poderiam ter sido escolhidas outras obras de engenharia com maior retorno económico ou se simplesmente não deveriam ter sido construídas?

Para mim, no geral, o problema não está na escolha desta ou daquela obra.  Ainda bem que todas elas formam feitas, assim, podemos estar hoje a beneficiar de uma invejável modernidade que claramente melhora a nossa qualidade de vida, mas desconhecida da generalidade urbanoide.  Infelizmente, o “Portugal-Interior coitadinho” continua a ser um mito urbano. A meu ver, qualquer que fosse a escolha, num mesmo contexto avulso e de modo casuístico e isolado, o retorno para a economia concelhia e regional seria o mesmo, uma igual incapacidade de reter o seu mais valioso ativo, o Capital Humano. O problema está essencialmente na opção de apostar num Crescimento, através das obras de engenharia, sem uma igual aposta no Desenvolvimento. Uma retenção do capital humano só se consegue quando um Crescimento é sustentado numa estratégia de Desenvolvimento e não esperar um Desenvolvimento por se apostar num Crescimento exclusivamente.

Será que todos desejamos uma mudança de rumo para o nosso Trás-os-Montes? É certo que este modelo não nos serve, a todos, mas também é certo que sempre dá um jeitão, a alguns, individuais ou coletivos. Uma mudança passa pela vontade popular de legitimar uma nova atitude de quem nos representa, pela escolha de gente que pensa “fora da caixa” e por programas eleitorais que não são meras listas de obras, num menu a la cart. Pode-se começar, por exemplo, por exigir das instituições político-partidárias uma atitude de recuperação da confiança dos cidadãos, mostrando-se capazes de promover uma cultura meritocrática como recusa de uma caquistocracia tolerante a qualquer tipo de nepotismo (familiar, de amigo, de estirpe ou de clã).

Se é fácil a mudança? Não, não é fácil, porque exige que se destaque sempre o interesse de todos e a sustentabilidade do território e que se atue numa inteligência coletiva participada. Todos somos poucos para arrepiar caminho. Então, porquê dividir e repartir para reinar? A “Parábola dos sete vimes”, (ouvir aqui) na obra "Os Meus Amores", de Trindade Coelho, ilustre mogadourense e conterrâneo, um homem com um pensamento intemporal, muito à frente do seu tempo, tem muito para nos ensinar.

E é possível? Claro que é, mas a maior das dificuldades é saber-se à partida que não se conseguem resultados palpáveis no final de 4 anos de governação. Uma estratégia de mudança, de os olhos postos no horizonte, demora muito mais tempo do que as vulgares ações de construção de obras de engenharia, listadas num qualquer “cardápio” de programa eleitoral.  Numa estratégia deste tipo, o compromisso é geracional, atravessa várias e é pensada para as garantir de forma continuada.

Mantendo uma analogia de linguagem terapêutica, que se suporta numa relação causa-efeito, proponho que o desenvolvimento deste tema se faça em dois momentos: aqui, no âmbito do Diagnóstico, ficaremos pela caracterização do território, e no Tratamento, veiculado pelo Modelo de Desenvolvimento Local, ficará para tema do próximo texto.

 

35 anos de Fundos Estruturais para Portugal (1986-2020)

 

Uma coisa é certa, desde a adesão à Comunidade Europeia, em 1 de janeiro de 1986, Portugal teve um pleno acesso aos instrumentos financeiros de apoio ao desenvolvimento dos países e das regiões mais desfavorecidas. Desse feito não nos podemos queixar. Mesmo já tendo sido atingido o pico máximo como o QCA III (2000/2006) e desde então termos vindo a receber cada vez menos, continuamos a estar no topo dos maiores beneficiários. Por exemplo, no corrente período (Portugal 2020 – e 2014/2020) Portugal é o oitavo país da União Europeia com maior orçamento. Para termos uma ideia, em 35 anos de programação plurianual dos Fundos Estruturais[1], Portugal beneficiou de um financiamento estimado em 132,3 mil milhões[2] de euros, o equivalente 66% do PIB de 2018. Nada mau tendo em conta que Portugal é um país beneficiário, a receber quase o triplo do que paga.

 

Ao longe, a fotografia parece perfeita, mas numa ampliação percebemos os sinais da imperfeição, que nos deveriam preocupar. Digo deveriam porque, num contexto atual de esgrima política, é assunto para lhe fazer um sinal da cruz, ao estilo “vade retro Satana”, para os que gostam de empurrar com a barriga, num modo de estar ao estilo “make-up”. Uma realidade que se quer ignorar, porque de tão malévola que é, só pode ser “coisa do diabo”.

 

Convém lembrar que Portugal pertence ao grupo dos que mais beneficiam, per capita, com o Orçamento da União europeia (UE), só ultrapassado pelos países do leste europeu, países comunitários ainda “adolescentes”. Ser beneficiário neste contexto, será um bom agoiro para o futuro do nosso país? Claro que não é! Não me parece que a economia portuguesa seja capaz de sobreviver na condição de passar a contribuir mais do que recebe. Ou será que iremos ser beneficiários para todo o sempre. Também não me parece que assim seja.   A coesão territorial é uma ambição da UE, mas não acredito que queira assumir-se como eterno mecenas de solidariedade social dos países mais desfavorecidos e que insistem em não desencravar.

 

Espanha, que não tendo pedido um resgate público mas que, em 2012, acabou por receber dinheiro dos fundos europeus para reestruturar a banca,  e a Irlanda, que viveu uma troika tal como Portugal, num programa de resgate para lidar com os seus déficits excessivos, por exemplo, são hoje países que apresentam, os saldos, per capita, mais equilibrados, isto é, com pouca diferença entre o que recebem e o que pagam. Mostram-nos que são capazes de viver sem fundos comunitários, ao contrário de nós que passaríamos um mau bocado, se por qualquer razão deixássemos de receber uma boa parte do que hoje recebemos e passássemos a contribuir mais.

 

A relação entre o que cada país recebe e paga do e para o orçamento da EU é na verdade um bom indicador de medida do estado de saúde económica desse país. Afinal, quem está no topo dos maiores contribuintes para o orçamento europeu são as economias mais fortes, como é esperado. O quanto não gostaríamos de um dia podermos estar em condições de sermos um país contribuinte, em vez de insistirmos em ser “eternos” beneficiário, numa postura de “mendigo”.

 

Trás-os-Montes, um eterno “trunfo na manga” na hora de reivindicar fundos para Portugal

 

Portugal está para a Europa na mesma proporção que Trás-os-Montes está para Portugal, isto é, da mesma forma que Portugal está na cauda do desenvolvimento da UE, Trás-os-Montes está na cauda do desenvolvimento de Portugal. Se Portugal estiver mal, nós transmontanos estaremos sempre pior! Evito pensar demasiado nisto, para não “vomitar” angústia, mas ninguém me tira da cabeça que ao poder central, de Lisboa, que manda em nós, dá muito jeito ter um Portugal a várias velocidades e retalhado a diferentes estados de desenvolvimento. Dá jeito ter regiões, como Trás-os-Montes, mais atrás no desenvolvimento, para na hora de reivindicar fundo da europa, nos sacarem da manga como se fossemos um “Ás de Trunfo”. Nós, Trás-os-Montes, a continuarmos assim, seremos sempre um bom motivo para Portugal receber ótimos pacotes financeiros, mas, uma vez cá dentro, o dinheiro não convém que seja utilizado no nosso real desenvolvimento. É que se nos desenvolvermos, na próxima negociação com Bruxelas, valeremos menos como “Ás”. Então, uma política de desenvolvimento do litoral com um desinvestimento no interior faz de nós um “Ás de trunfo” cada vez mais valioso. Reflitam nisto e digam-me se não tem sido este o nosso fado.

 

Trás-os-Montes, num pequeno panorama

 

Uma análise empírica baseada numa observação in-sito e ex-sito (olhada de fora e de dentro), ao longo do meu percurso de vida, leva-me a concluir que Trás-os-Montes é um mosaico socioeconomicamente retalhado por uma heterogeneidade à toa, onde cada município faz isolado o seu próprio caminho, numa luta inglória pela renovação das gerações e numa gritante incapacidade de gerar economia promotora de empreendedorismo e decorrente criação de emprego. As entidades empregadoras que resistem ou que prosperam (por terem de ocupar as falhas de mercado, infelizmente) estão cada vez mais na esfera de dependência exclusiva dos orçamentos municipais ou da segurança social (autarquias e IPSS), cuja ação social que prestam é, cada vez mais, restringida à geriatria e ao envelhecimento digno e ativo das suas populações idosas. Trabalho digno de Louvor! 

 

O pior é que não nos faltam recursos capazes de nos fazem arrepiar caminho. Esta é uma perceção geral do nosso território, que em momento algum nos deixa duvidar do seu potencial. É este mesmo inegável potencial que ainda faz mover alguns (poucos ainda) empreendedores a arriscarem modelo de negócio, pensados e organizados nas melhores estratégias de sucesso. Infelizmente, não passam de modelos de negócio isolados, tipo ilhas ou casos de estudo, que, per si e contra uma maré à toa, veem o resultado dos seus esforços apenas espelhados nos seus positivos balanços financeiros. O reflexo na economia local ficaria tão facilitado se estes e outros novos empreendedores/investidores vivessem num claro e uníssono Modelo de Desenvolvimento Local, suportado numa coesa estratégia municipal, sub-regional e regional. Na teoria dos cardápios do desenvolvimento rural isto já existe, mas, na prática geral, quando os distritos e os municípios se juntam à volta de um bolo financeiro, nada mais fazem do que o fatiar e o repartir, para  cada qual levar o seu quinhão para casa e fazer dele o uso que bem entender.

Também é verdade que temos bons exemplos ou mesmo casos de estudo de agrupamento de municípios que comungam de uma estratégia transversal, onde se repugna a ideia de repartir bolos e onde se favorece a utilização do bolo por inteiro em investimentos estratégicos e transversais com retorno para todos. É por isso que eu digo que Trás-os-Montes é um mapa ilustrado em mosaico, cujo padrão é definido a partir de dois eixos de desenvolvimento: o EIXO A24 -Lamego/Chaves- e o EIXO A4 -Vila Real/Bragança.

Trás-os-Montes tem dois distritos (Vila Real e Bragança) numa acentuada heterogeneidade, intra e interdistrital, por força de diversos motivos históricos e culturais fortemente marcados pela orologia acidentada e mais recentemente por motivos de políticas públicas seguidas nas últimas décadas, que favoreceram deliberadamente o EIXO A24 e o EIXO A4, sacrificando com desigualdade os municípios à medida que se afastam destes, e que  marcaram o mosaico de retalhos que  hoje temos, senão vejam:

Por exemplo, se pegarmos nos dados da população residente em 2017 e se calcularmos a percentagem anual média de perda de população residente, entre 2008 e 2017, para cada município, e se pintamos o mapa de concelhos numa correspondência de cores, obteremos mais ou menos o panorama ilustrado na figura 1.

Se nos fixarmos no padrão de cores da figura 1 percebemos que no mapa em cima, as cores mais densas (mais população), e no mapa em baixo, as cores menos densas (menos perda de população), no geral, concentram-se ao longo desses dois eixos de que vos falei, como mostra a figura 2.

 

Já agora, baseado nestes dois indicadores e de forma empírica, acabei por pintar uma perceção minha de uma possível carta de risco (figura 3), em jeito de assinalar a atuação prioritária para inverter uma tendência de há muito.

Aceito que esta minha opinião não comungue de consenso geral, pois eu próprio não teria esta perceção se não fosse o caso de ser um transmontano orgulhosamente nascido e contribuinte de um do município desfavorecido. Um município rico na diversidade de recursos, como todos os outros. Ladeado pelos vales encaixados dos rios Sabor e Douro e pelo planalto mirandês, que oferecem um mosaico paisagístico de beleza única. Infelizmente, vive um elevado custo de oportunidade, não pela escassez de recursos, porque esses são vastos, mas pelo desperdício de não se investir na retenção do valor acrescentado da cadeia comercial dos produtos fileira e dos serviços correlacionados. Para mim, é aí que reside a ineficiência do território, é aí que deveríamos atuar, num Modelo de Desenvolvimento capaz.

Como já prometido, fica o compromisso de abordar o Modelo de Desenvolvimento no tema da próxima redação.

 

[1] Cinco períodos: três quadros comunitários de apoio (QCA I, de 1989 a 1993; QCA II, de 1994 a 1999 e QCA III, de 2000 a 2006), o Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN, de 2007 a 2013) e o Acordo de Parceria (Portugal 2020, de 2014 a 2020)


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