Luis Guerra

Luis Guerra

Luz e trevas

O valor e a perenidade de qualquer mensagem dependem da verdade interna que a mesma transmite. Nesse sentido, a mensagem deve provir de um “lugar” profundo da mente do mensageiro, isto é, de um espaço mental que esteja para além dos condicionalismos espácio-temporais do “eu”, essa ilusão identitária da consciência (entendendo esta como o aparelho coordenador do psiquismo humano), de tal modo que possa ser captada pelas pessoas de outras regiões culturais e de outras épocas.

Há pouco mais de dois milénios e meio, na antiga Pérsia, um homem inspirado, que ficou conhecido como Zaratustra, escreveu estas palavras significativas: «Cada um dos dois espíritos primordiais é independente em pensamentos, palavras e obras. De início, reuniram-se para ordenar o mundo destinando a pior vida, o Inferno, para a maldade e o Céu para o melhor estado mental. Os dois espíritos fizeram cada um o seu próprio reino formando moradas de erro, um, e moradas de justiça, outro. Ahura Mazda escolheu a todos aqueles que lhe agradaram pela sua bondade enquanto o Mau Espírito personificado escolheu os demónios-deuses e aqueles que ajudaram a manchar a vida dos mortais. Ao travar-se a batalha final, que começou quando os Daevas fizeram do Demónio seu aliado, a Santa Mente terá ganhado o reino. Dos dois primeiros espíritos do mundo, o bondoso disse ao prejudicial: “Nem os nossos pensamentos, nem os nossos mandamentos, nem a nossa inteligência, nem as nossas crenças, nem as nossas obras, nem a nossa consciência, nem as nossas almas, estão de acordo em nada!”».[1] 

A guerra tem o condão de despertar estes espíritos primordiais, colocando o ser humano perante a sua dualidade interior, quer dizer, diante dos caminhos internos que se lhe abrem.

Porém, talvez ingenuamente, tendemos a projetar esta realidade interna para a paisagem externa, personificando nos protagonistas da guerra essas tendências acima descritas alegoricamente, dividindo os mesmos em “bons e maus” e simplificando, desse modo, a compreensão dos fenómenos sociais, apesar de essa dualidade existir em todas as pessoas.

Os mitos fundadores das diversas culturas, entendidos como traduções do sistema de tensões que os povos viveram no processo de formação daquelas narrativas alegóricas, configuram imagens orientadoras de condutas e chegaram até aos dias de hoje no substrato cultural dos diversos povos e indivíduos.

Estas histórias míticas não só traduzem as tensões mais profundas dos povos como procuram apontar uma via de relaxamento profundo das mesmas, oferecendo paraísos celestes e outras imagens luminosas como lugares a que se pode chegar, dependendo do que se faça.

No entanto, apesar da pontual irrupção do sagrado nessas narrativas, traduzida na aparição dos deuses, estas nem sempre logram transferir e integrar as cargas psíquicas associadas a essas tensões profundas, deixando um rasto de violência e destruição catárticas que fica por resolver, tendendo à repetição.      

Assim, hoje continua-se a crer difusamente que há glória na guerra, como se os feitos na mesma pudessem conduzir à imortalidade de quem a empreende, fazendo ecoar aquelas promessas de escolhas divinas e banquetes eternos com os deuses para aqueles que se distingam na batalha, de que nos falam os mitos nórdicos.[2]   

E, contudo, a memória de duas mortíferas guerras mundiais devia bastar para deitar por terra essas expetativas deslocadas, tal como estes vinte dias de conflito na Ucrânia vieram relembrar, agora que o sofrimento humano acumulado supera já todas as supostas vantagens defendidas pelos partidários da guerra, de um e outro lado da contenda.

Há, de facto, uma “cidade escondida”, um “jardim celeste”, um “banquete divino”, à espera do ser humano, como muitos mitos sugerem, mas o caminho para essa realidade intangível não passa pela violência e o sofrimento.

Esse estado mental depende da acumulação de ações unitivas, aquelas que resultam de se pensar, sentir e agir na mesma direção e de se ser recíproco com os outros, tratando-os do modo que se quer ser tratado.

Por isso, faz sentido ter em conta aqueles princípios de ação válida que podem ajudar na procura da unidade interna, permitindo ascender internamente em direção luminosa.[3]

Assim, neste momento, com base na sua experiência, talvez os líderes russo e ucraniano devessem começar a considerar, nomeadamente, que quando se força algo para um fim, produz-se o contrário; que não é sábio opor-se a uma grande força, mas sim retroceder até que aquela se debilite, para avançar depois com resolução; e que, quando se prejudica outros, se fica acorrentado ao sofrimento, mas que se pode fazer o que se quiser com liberdade, contanto que não se prejudique os demais.[4]

Se e quando o fizerem, então a paz terá realmente uma chance, interna e externamente, precedendo a justiça reclamada por ambas as partes.

Entretanto, tomara que o assomo dos “velhos” mitos à superfície possa contribuir para despertar outros significados profundos, capazes de mostrar os novos caminhos que o ser humano precisa de percorrer rumo ao futuro luminoso almejado.

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

 

[1] Cfr. SILO. Obras Completas, Vol. I. Mitos Raices Universales: Mitos Persas (tradução livre). Disponível em www.silo.net

[2] Cfr. autor e obra citados. Mitos nórdicos.

[3] Cfr. SILO. A Mensagem de Silo: O Olhar Interno, Cap. XIII. www.silo.net

[4] Ibidem.


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