Teresa A. Ferreira
Madame Josephine: casamento em Alvites (II - Cap.)
Parou por uns instantes a dar largas à imaginação. Depois, como quem despe um anjo, retirou o lençol. Os olhos ficaram a tiritar de espanto, as lágrimas escorriam lavando-lhe as faces, o coração pulava de medo e alegria – voara ao tempo em que Antoine fizera o seu primeiro nu. Que lindeza de pintura. Viveu momentos pavorosos devido à família. Não queria ser descoberta – a pintura era imaculadamente bela, mas o seu corpo exposto daquela maneira, num meio tão conservador…não podia ser. Deixou-se ficar por longos momentos a observar todos os detalhes até que, levemente, tocam-lhe no ombro direito. Gelou por inteiro. Não sabia como agir. Fechou os olhos, inspirou fundo e voltou-se. Era o Gabriel, o autor daquele descomunal encanto de pintura. Quase desfaleceu. Na sua mente passou, um por um, cada membro da família.
- Que pintura, Gabriel! É linda e magistralmente executada. O meu marido é pintor. Ensinou-me a observar e apreciar a pintura. Mas já viu o risco em que põe a minha sobrinha? Se descobrem lá se vai o casamento.
- Ainda bem. Não se casa por amor…termina a farsa.
- O que sabe do casamento?
- Sei que estão a obrigá-la a casar e…
- Desembuche, se faz o favor?
- Coisas do pai.
- Meteu-se em problemas e a moeda de troca é a filha?
- Isso não lhe sei dizer, mas um dia chegou a casa, mais torcido do que sóbrio, e disse alto para quem o quis ouvir: preparem o enxoval que a Cecília tem noivo. E subiu para os aposentos sem dar nenhuma explicação até agora. Só aos poucos se foi sabendo quem era o noivo e a data do casamento. Cecília nunca aceitou. Que podia fazer contra a vontade do pai?
- Pois é aí que vamos trabalhar, meu caro Gabriel. Iremos descobrir o que está por detrás de tão rude resolução. Depois, movemos as peças do tabuleiro à nossa maneira. Vocês ainda vão casar-se e ser felizes. Confie em mim. – o semblante de Gabriel iluminara-se com estas palavras - Quanto ao quadro…. Ajude-me a abrir o vestido, se faz o favor. Não fique parado a olhar-me!
Gabriel, um pouco encabulado, desabotoou alguns botões e encontrou um sinal castanho, bem vivo, sobre a omoplata direita.
- Tome boa nota desse sinal e pinte-o no quadro.
- Mas assim estamos a perder trunfos, Madame.
- E a honra da minha sobrinha, não vale o sacrifício? Direi que foi Antoine que o pintou. Trate de apagar o seu nome do quadro e ponha Antoine J. David. O quadro vai aparecer para confundir toda a gente e fazer saltar a tampa a uns quantos. Precisamos de rastilho e boa pólvora. No final…daremos as explicações de que sou eu no quadro, e a prova é o sinal. Somos muito parecidas. Se me tivesse conhecido na idade da minha pequena Cecília?
- Madame: isto é brincar com o fogo!
- É só o começo. E vamos brincar muito, mon cher ami. Vá, trate de todos os pormenores, embrulhe muito bem, lacre e entregue-o discretamente à minha secretária. Vite, vite!! Adeusinho.
Seguiu em direção ao solar da mana Dione.
- Mana, querida, como vai?
- Muito bem, minha querida. E a mana?
- Eu? Melhor do que nunca. Só me falta o Antoine para tudo estar perfeito. Vim aqui, porque quero dar uma grande festa, mas preciso que colabore com a minha secretária, e deixe a governanta comigo.
- Que tipo de festa, mana?
- Um jantar e baile de despedida com toda a família, de parte a parte, e alguns amigos mais próximos. Quero muita elegância como há muito não se vê por aqui.
- Mas, assim, em cima da hora?
- O dinheiro e a nossa sagacidade tudo podem. Conto com a mana. Venha daí.
E seguiram para a biblioteca do solar de Josephine, onde a secretária, a governanta e o mestre de cerimónias esperavam instruções.
- A mana e a Caroline fazem a lista de convidados e cuidam de enviar os convites, o mais rápido possível. Não se esqueçam de convidar o Pe. Rodrigues, o Comissário Medeiros, as minhas amigas Isabel, Augusta, a tia Celestinha e a Helena. Eu, a Fernanda e o Joaquim cuidamos do menu, das bebidas, da música, das flores, dos lugares à mesa… E vós, assim que terminem a tarefa, venham ajudar-nos.
Dione adorava festas, mas o dinheiro e o mau humor do marido não lhe permitiam tais divertimentos.
O solar ganhou vida nova com tanta azáfama. Dali por dois dias, chegavam as flores, criados para ajudar, os músicos a ensaiar, etc.
Três horas antes do jantar, aconteceu a reunião ultrassecreta, na sala que ninguém conhecia a entrada nem a saída. Os olhos eram-lhes vendados e guiados pela mão de Josephine.
- Meus amigos: podem tirar a venda.
Entreolhavam-se com ar de espanto, porque haviam entrado por sítios diferentes sem nenhum se cruzar com o outro. Era um jogo que mantinha com a anuência de todos e cada um sabia respeitar o código de conduta. Ninguém hesitava, quando recebia o cartão de chamada.
- Chamei-vos aqui para me ajudarem a clarear as ideias e serem espiões neste jantar - baile. Preciso mais dos vossos olhos do que do ar que respiro. Tomem nota de todo e qualquer pormenor, ainda que vos pareça insignificante. O caso é o seguinte: o meu cunhado Filipe quer casar a filha com um traste de homem. Não sei que motivos o empurram a cometer tão grave ato. Temos de descobrir o enredo e virar o jogo ao contrário. Amanhã, às 8:00 horas, tomaremos aqui o pequeno-almoço para analisarmos tudo. Por uma questão de praticidade, mandei preparar aposentos para todos cá ficarem.
Josephine levantou-se, pôs a mão direita em cima da Cruz de Cristo, que estava no centro da mesa, e todos repetiram o gesto como prova de lealdade. Pe. Rodrigues disse uma pequena prece em conjunto com os seus pares. Saíram de olhos vendados e na sala central do piso superior, dirigiram-se aos aposentos para se vestirem.
Às 19 horas, impecavelmente vestida, esperava os convidados no salão da entrada, com um longo vestido cor de pérola, de costas destapadas, o cabelo apanhado com um apontamento de flores brancas miudinhas, luvas longas de renda, um bracelete por cima a fazer conjunto com os brincos e um faustoso colar de rubis, que um certo cavalheiro oferecera à mana Dione, e que ela lhe pedira emprestado. Fazia-lhe sobressair o longo decote… Esse cavalheiro também iria comparecer na festa, assim como o bêbado oficial para dar cor e espicaçar os sombrios e anafados pavões.
A pintura estava colocada no salão de jantar, num cavalete, ainda embrulhada e lacrada de forma discreta. Não chegara a ver o trabalho final. Estava expectante quanto ao resultado das alterações. Havia que confiar em Gabriel…
Solar dos Pereiras Cabrais, Alvites, Mirandela.
Continua... O mistério adensa-se.
© 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝒅𝒐 𝑨𝒎𝒑𝒂𝒓𝒐 𝑭𝒆𝒓𝒓𝒆𝒊𝒓𝒂, 05-07-2023
𝑵𝒂𝒕𝒖𝒓𝒂𝒍 𝒅𝒆 𝑻𝒐𝒓𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑫𝒐𝒏𝒂 𝑪𝒉𝒂𝒎𝒂,
𝑴𝒊𝒓𝒂𝒏𝒅𝒆𝒍𝒂, 𝑩𝒓𝒂𝒈𝒂𝒏ç𝒂, 𝑷𝒐𝒓𝒕𝒖𝒈𝒂𝒍.
Este texto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.