Teresa A. Ferreira
Madame Josephine: casamento em Alvites (V - Cap.)
Josephine, enquanto subia os degraus, respirava fundo e tentava abstrair-se da reunião anterior. Embora o Comissário fosse seu amigo, o caso era outro e com outra relevância. Afigurava-se-lhe necessário e um bom exercício separar as águas.
- Viva, bom dia, Comissário Medeiros, como vai?!
- Bom dia, Josephine. Vou bem, muito obrigado e a Senhora?!
- Vou bem, muito obrigada. A festa de ontem…foi tudo menos normal, tal como eu previra. A morte do meu cunhado Filipe.... Não, não... não estava nos planos, apesar de ter mandado recolher todas as munições dos dois solares.
- Fez bem, Josephine. Justificava-se.
- Tem alguma suspeita da origem da morte?
- Ainda não. Temos de esperar pela autópsia. Mas…afigura-se-me envenenamento. Tenho cá para mim que foi essa a causa da morte.
- Sabe, Comissário, estou em crer que esta morte será difícil de deslindar.
- Ora, essa, Josephine! Você consegue descobrir tudo e surpreender-me.
- Este caso tem um grau de complexidade muito elevado. Veja, Comissário: o que lhe parece este casamento arranjado sem lógica?
- Pois…parece-me…
- Não desconfiou que o meu cunhado Filipe, sendo um mulherengo, andasse amantizado com a Judite?
- Olhe que nunca desconfiei!
- Nem eu! Mas vivendo em Paris, era difícil adivinhar ou desconfiar. Sempre vi o meu cunhado como um homem de muitas mulheres, não de uma amante apenas.
- Pois, também eu. Muito me conta.
- A missa ainda nem começou. Se a intuição e as informações que me chegaram não me falham, temos muito que investigar.
- Então faça o favor de me pôr a par da situação.
- Durante o jantar, a nossa amiga Augusta descobriu o casal de traidores. Josephine foi relatando o teor da reunião que tivera com os amigos.
- Muito me conta, cara Josephine! Foi-me impossível estar presente na reunião de hoje... "afazeres por causa da morte do seu cunhado" (viu-a levantar o sobrolho esquerdo) ... Quer contar-me mais alguma coisa, Josephine?
- Por ora, são leves desconfianças.
- Mas podem conduzir-nos a resultados, como de costume! Vá, abra lá essa caixinha de Pandora!
- Sim, sim! Ainda estou um pouco confusa com tudo o que aconteceu. O José Carlos sabe demais, mas isso já nós sabíamos - talvez devêssemos chamá-lo -, o que lhe parece, Comissário?
O Comissário sorriu com o olhar, disfarçando que não tinha percebido a fuga de Josephine. Não a podia apertar, se ela não queria falar… Talvez lhe faltasse cruzar mais elementos.
Era uma senhora dotada e prendada, mas imprevisível. Andava na casa dos cinquenta anos, inteligente e culta, sagaz, forte sentido analítico e crítico…parecia andar sempre distraída, mas era o oposto, olho vivíssimo. “Havia que fazer um correto juízo da situação, para não culpar inocentes.” – assim pensava ela.
Enquanto o diabo esfrega um olho, José Carlos apresentava-se no solar de Josephine. Depois dos cumprimentos formais, assim exigia a situação, indagou sobre a razão da sua presença. Começou por falar o Comissário Medeiros:
- Bom! Mandei-o chamar para me esclarecer algumas dúvidas, se não se importar.
José Carlos sorria, sentindo-se útil, embora percebesse que a sua presença no jantar, na véspera, tivesse sido algo que Josephine preparara meticulosamente. Conhecia-a de longa data.
- Em que vos posso ser útil, meus caros amigos? Peço desculpa. No presente caso, os laços de amizade têm de ficar de fora, não é verdade?
O Comissário Medeiros anuía com a cabeça, notando a tirada de José Carlos.
- Daquilo que percebi, no seu comportamento durante o jantar, reparei que o José Carlos sabe coisas que nós desconhecemos. O que é que sabe sobre a vida extraconjugal de Filipe?
- O que sei, Comissário.... Gostaria que me enquadrasse melhor, se não se importa.
- Como sabe, aliás, toda a aldeia e arredores sabem, o Senhor Filipe faleceu ontem, após o jantar. Tenho sérias desconfianças de que tenha sido assassinado…. Ando aqui às voltas com o móbil do crime e deixo os meios para o médico legista. Peço-lhe que nos diga o que sabe sobre o Senhor Filipe...se tinha inimigos...porque, durante o jantar, você foi muito incisivo com ele?
- Dito assim, até parece que fui eu!
- Todos somos suspeitos, embora uns menos do que os outros. – atalhava Josephine, em silêncio, escutando e observando tudo.
- Mas eu não fui.
- Somos dois. – afirmou Josephine.
- Três. Eu não tive nada a ver com o caso. – contestava o Comissário.
- José Carlos: vou abrir-lhe o jogo. Convidei-o porque desconfiava que me pudesse ajudar a acabar com o noivado e casamento, engendrados pelo meu cunhado Filipe. Sempre soube do seu comportamento repudiante perante o Filipe, do seu amor pela minha irmã Dione, do seu desvio pelo álcool…
- Não diga mais, se faz o favor. Tudo isso é verdade, mas respeito a sua irmã e sempre a respeitei. Quanto ao seu cunhado, não tinha nada a ganhar em matá-lo – a Dione só tinha olhos para ele! Se o matasse, ela nunca me perdoaria. Perdia-a de vez. Não sou tolo ao ponto de arruinar ainda mais a minha vida. Já chega o álcool que se atravessa no meu caminho. Apesar de me ter provocado com o colar de rubis, os brincos e a bracelete que em tempos ofereci à sua irmã Dione – não julgue que não percebi. Sou bêbado, mas não sou parvo. Não levei a mal, até achei graça alguém tê-los apreciado. E naquele vestido…
Josephine sorria com a observação, e José Carlos prosseguiu.
- Lembra-se de que à minha frente estava a Senhora Judite?
- Sim. E o que tem?
- Tem-me um ódio de morrer.
- O que lhe fez?
- Apanhei o seu cunhado e a Senhora Judite em flagrante, há cerca de dois anos. Bem tentaram disfarçar... mas, comigo, não pegou. Esta história de quererem casar os filhos, a mim, pareceu-me forjado.
- Explique-se.
- Estou em crer que era para os amantes ficarem mais próximos e a pobre da Dione a engolir tudo.
- Casamento.... desfeito, Filipe... morto, Dione... a principal suspeita - Josephine acrescentava mais lenha à fogueira.
- Ela não o matou, pois não? – questionava José Carlos.
- Com balas…. Não. Mas pode ter morrido do coração, com o susto, envenenado...
- Ela não pode ser presa. Por favor, Comissário Medeiros?
- Nem você pode confessar o crime se não o cometeu. Mas sabe quem poderá ter sido?
- Estava bem bebido para ter a lucidez necessária e observar detalhadamente o que estava à minha frente. Fiquei cego de raiva com o casal de amantes, ali em frente à Dione, sem se coibirem de trocar carinhos por debaixo da mesa.
Batem à porta do escritório, onde decorria a reunião.
- Madame Josephine, uma criada encontrou esta pochete no quarto de banho junto à copa e entregou-ma. Creio que pertence a alguma convidada…
- Deixe cá ver o que contém a malinha de senhora. – pedia o Comissário.
Ao abri-la, encontrou, entre os pertences, um pequeno frasco conta-gotas. Ficaram todos de olhos postos no frasco. O que conteria? Talvez um elixir para os nervos…talvez pior…
O Comissário guardou a pochete e o frasco para análise e a secretária saiu do escritório.
- Temos mais uma peça para nos ajudar a deslindar o caso. – afirmava Josephine.
- Pode ser que sim, mas só saberemos depois de ser tudo analisado e juntar as pontas. Que mais sabe do casal de amantes?
- Ele oferecia-lhe prendas caras e o marido nem dava por nada. A casa de campo de Judite era a alcova…. Além disso, era um jogador, um viciado em álcool e não podia ver uma mulher à frente. Nunca trabalhou e quem mantinha a família…
- Era eu. – afirmou Josephine.
- Está muito enganada, minha cara.
- Como enganada?
- O Filipe era uma esponja por dinheiro. Sorvia tudo quanto apanhava à sua irmã. A forma de sustentar o solar era…
- Diga? Já que começou…. Quantas surpresas ainda estarão por revelar?
- Vendia a fruta dos pomares dos dois solares e guardava a mais madura para fazer compota “Doce Dona Flor”. Quando o filho ia ao Porto, levava-a para vender nas lojas. Os filhos eram cúmplices e ajudavam-na muito sem darem nas vistas. O Filipe nunca sonhou com o negócio, nem queria saber de onde vinha o dinheiro que lhe punha de tudo na mesa.
- Eu nunca desconfiei que o caso era tão grave. Sabia que as coisas não iam bem, mas tanto…? Minha pobre irmã! E eu tão longe para a apoiar...
- Tem de vir cá mais amiúde. – sugeriu o Comissário.
- Não fosse tão longe daqui até Paris…estava cá todos os meses.
- Bom…voltando ao jantar. Não percebi por que introduziu a pintura?
- Foi para ajudar o Arnaldo a acabar com o seu noivado.
- Espere, Josephine: perante isso, os amantes ficaram coléricos. Será que o veneno era para o Filipe ou para si? Fartou-se de provocar toda a gente, não fui só eu. Você fê-lo com subtileza.
- É uma hipótese a considerar. – afirmava o Comissário, seguido de Josephine.
- Então muda tudo. Alguém a quis matar e morreu o Filipe no seu lugar. Paz à sua alma. - dizia José Carlos.
- Já pensou que poderia ter sido para si, José Carlos? Também pôs os convidados, em especial os amantes, ao rubro. – contestava o Comissário.
- Ou para a Augusta, que descobriu tudo quando deitou o garfo ao chão e viu os amantes com as mãos no joelho… - acrescentava Josephine.
Todos, ou quase todos, tinham pedras nos sapatos, sendo que umas mais aguçadas que outras. Havia que saber, em primeiro lugar, qual fora a causa da morte - causa externa, estava garantida -, mas qual? Depois, verificando-se que fora envenenamento, era imperioso analisar o conteúdo do frasco e cruzar com a possível causa da morte. Havia, ainda, que descobrir quem cometeu o ato, no meio de tantos convidados e criados, um verdadeiro quebra-cabeças!
Continua...
Solar dos Bacelares em Alvites, Mirandela
© 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝒅𝒐 𝑨𝒎𝒑𝒂𝒓𝒐 𝑭𝒆𝒓𝒓𝒆𝒊𝒓𝒂, 21-07-2023
𝑵𝒂𝒕𝒖𝒓𝒂𝒍 𝒅𝒆 𝑻𝒐𝒓𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑫𝒐𝒏𝒂 𝑪𝒉𝒂𝒎𝒂,
𝑴𝒊𝒓𝒂𝒏𝒅𝒆𝒍𝒂, 𝑩𝒓𝒂𝒈𝒂𝒏ç𝒂, 𝑷𝒐𝒓𝒕𝒖𝒈𝒂𝒍.
Este texto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.