Manuel Igreja
Mesquinhez
O moço chegou, viu e venceu. Senhor de uma bagagem cultural suficiente para encher um comboio caso o conhecimento das coisas se materializasse, simpático e humilde, detentor de um daqueles sorrisos que sabe bem ver porque entreabrem a alma, foi jogando e arriscando numa atitude própria de quem sabe que os ganhos também medram por entre a capacidade de se correr risco.
Falo do concorrente que aqui há uns dias arrebatou cem mil euros no concurso televisivo “Quem quer ser milionário”, respondendo e acertando pergunta a pergunta num jogo que exige calma, sabedoria, presença de espírito e decisão para se ir em frente mesmo quando as pernas tremem porque as certezas não são firmes e a prudência aconselha a retirada a quem tenha para si que mais vale um pássaro na mão que dois a voar.
Desde logo se apercebeu que estava ali alguém bem capaz de levar a carga até Alvite subindo degrau a degrau rumo à pergunta final. Notou-se que o rapaz sabia da poda e que tinha alicerces para sair dali com o prémio maior. A própria apresentadora logo se apercebeu e detectando a possibilidade de surgir ali um aliciante em termos de audiências e de futuros concorrentes, fez o que pôde para que o senhor à sua frente dali saísse plenamente vencedor.
Por mim gostei de ver. Simpatizei com a pessoa em causa, mas também me dá gosto ver as capacidades premiadas. Não me resta a mínima dúvida de que talento foi o que mais houve e se mostrou na prova de entretenimento mas também de aprendizagem em causa que, diga-se de passagem, vale a pena mais não seja por causa disso já que uma pessoa aprende até morrer.
Não foi o que pensaram ou pensam os corajosos e lúcidos opinantes que pululam nas redes sociais.
Quando veio a lume que o concorrente é filho de um antigo Procurador-Geral da República e sobrinho de um dos mais reputados arquitectos nacionais, logo se acendeu a fogueira da Inquisição ateada pela indignação de quem se esqueceu do mérito demonstrado para logo só ver conluios e ajudas escusas. Para os campeões da moral nascida e criada em sofá de sala, apresentadora e concorrente devem ser vilipendiados e crucificados por atentado à mediocridade vigente.
Não nos faltam paladinos armados com teclados de computador em guerras virais mas comodamente pelejadas. Outro caso que me ocorre para ilustrar este meu dizer, é o que surgiu quando um dos nossos mais conhecidos cantores disse que se ia embora daqui de Portugal impelido pelo desencanto. Homem de sessenta e cinco anos, agarrou na viola e partiu para o Brasil. O filho, escritor ainda novo mas já com provas dadas, escreveu uma carta ao pai exibindo-a no ciberespaço.
Foi um ar que lhe deu. Caindo na asneira e no erro de afirmar que o pai abalou porque a mísera reforma auferida pelo progenitor nem para mandar cantar um cego lhe chega, deu azo a que logo se erguessem vozes de apoio e de condenação. O azedume, o despeito e o veneno de imediato se espalharam. Soltaram-se os fantasmas dos incómodos e das memórias políticas a que se colou em tempos o cantor, e apesar de passadas que são quatro décadas de democracia, muitos dos que desejam que o mês de Abril fosse um mês de Fevereiro mais curto por se ficar no dia vinte e quatro, atiram farpas e almejos de ida sem volta.
Por sua vez, os apoiantes do artista, verteram lágrimas de crocodilo num lamento desajustado unicamente vindo à tona porque alguém levantou a poeira no caminho que um cidadão resolveu voluntária ou involuntariamente percorrer. Compreensivelmente fez-se um símbolo deste acto de partir naquilo que foi uma atitude propositada e em certa medida de aplaudir porque aos que têm mais força mercê da imagem largamente difundida que por causa da actividade artística ou cultural, compete gritar contra a injustiça e as situações socialmente desconfortáveis.
No entanto, uma coisa é uma coisa, outra coisa, é outra coisa. Andou-se mal quando se mencionou os parcos rendimentos do artista, mormente a diminuta pensão de reforma auferida ao fim de uma carreira de meio século. Não se parou para pensar que se esta é curta, em grande parte ao próprio de deve, uma vez que tal significa que os rendimentos declarados no percurso contributivo não terão total correspondência com o rendimento auferido. Isto digo eu, que nem sei lá assim muito desses assuntos, mesmo que veja mensalmente uma boa parte do meu ordenado ser levado como contributo para a Segurança Social.
No que me não restam dúvidas é na mesquinhez que notei numa e noutra situação a que aludi, como exemplo da pequenez de espírito que me atrevo a descortinar como algo que cresce por aí que nem erva daninha. Até se me afigura a páginas tantas, que mais do que queremos estar bem, queremos é que ninguém esteja melhor que nós, numa postura com mesquinhez em que se escamoteia o mérito a quem o tem, e se premeia a mediocridade a quem a exibe.