Magda Borges

Magda Borges

Monstros invisíveis

Jamais pude imaginar que a minha primeira contribuição para o Diário de Trás-os-Montes fosse feita nestes tempos peculiares que vivemos.  No entanto, são precisamente estes tempos que me impelem a escrever e a partilhar um testemunho pessoal, decorrente de uma vivência que me faz olhar para esta nova realidade, como uma realidade não tão nova assim.  

            Para que fique claro, não sou profissional de saúde e o que vou escrever neste texto, escrevo-o na qualidade de paciente. É apenas a minha perceção. O meu olhar.

            O mundo combate um monstro invisível que se agiganta no seu percurso. Dizima vidas à sua passagem, lança o caos nas vidas de todos nós, confina-nos a uma casa ou a uma cama de hospital, e não sabemos quando nem como tudo isto vai acabar. Sabemos que depois desta tormenta, nada será como dantes. O desafio é um desafio de saúde global, milhares de pessoas já pereceram devido ao COVID19, mas a questão da saúde vai muito além de uma estratégia concertada e necessária para travar o avanço desta calamidade.

            Ao cidadão comum foi pedido o confinamento. Por tempo indeterminado. De um dia para o outro os nossos movimentos são restringidos e permanecemos em casa. Dia após dia, após dia. Se a primeira semana passa com relativa facilidade, os dias começam a pesar cada vez mais no ânimo de cada um de nós. Os media bombardeiam-nos com atualizações das atualizações e as redes sociais fervilham de informação que nem sempre é fidedigna, mas que nós, pelo sim pelo não, vamos ler. É todo um tsunami de vídeos e gráficos e partilhas e imagens… Nós absorvemos tudo. Ainda que o façamos de forma subliminar, não nos apercebemos mas estamos completamente emaranhados na teia. É normal. Somos humanos. Faz parte da nossa natureza.

            Venho falar-vos dos desafios que se colocam à nossa saúde mental quando somos sujeitos a contextos de stress extremo, quando a nossa vida e a vida dos que amamos está em risco, quando o inimigo pode estar em qualquer parte e nós podemos ser apanhados desprevenidos. Qual o denominador comum a estas situações, independentemente do elemento desencadeador? O medo. Esse inimigo invisível que se instala em nós, paulatinamente, sem que disso nos demos conta.

            Em 2016, na sequência da vaga de ataques terroristas que assolou a França e outros países europeus, fui engolida pelo monstro do medo. A trabalhar em Paris e a residir com o meu filho de uns parcos 4 anos de idade, o quotidiano tornou-se insuportável. O stress intenso de tudo o que vos descrevi acima, acrescido da reação normal de cada um (tsunamis informativos e busca constante de mais e mais informação), fez com que, em muito pouco tempo eu deixasse de dormir. E quando dormia era assolada por pesadelos macabros dos horrores que testemunhávamos a um ritmo bastante consistente. Quando esta situação começou a tornar-se incomportável e eu percebi que estava com um problema sério, procurei ajuda e fui diagnosticada com Síndrome de Stress Pós-Traumático. Sucediam-se as crises de ansiedade e os ataques de pânico. O medo apodera-se de qualquer réstia de racionalidade que consigamos ter e começamos a gerir o nosso dia-a-dia com base numa lógica absolutamente desconcertante de: vou ali a esta hora porque a probabilidade de haver um ataque é mais baixa, vou a este ou aquele local porque tem menos gente e provavelmente quando quiserem atacar vai ser para matar muita gente… Enfim, tudo o resto não será difícil de imaginar. Desde então que me debato com este problema que, apesar da terapia, das tentativas de racionalização, da mudança de local de trabalho, permanece no meu cérebro. Do nada, o coração acelera a um ritmo vertiginoso e falta o ar (ataque de pânico), noites inteiras em branco a tentar respirar, a tentar gerir emoções, a tentar tomar o comando de tudo isto, sem sucesso. Só queremos que chegue a manhã (crise de ansiedade).

            Não pretendo com isto falar-vos da minha vida. Não é pertinente. A minha partilha é destinada a cada um de vós. Escutem-se. Olhem para vocês. Para as vossas reações e pensamentos. Vigiem o vosso sono ou a ausência dele. Se eventualmente alguém se revê no que acima descrevi, procure ajuda. Temos vários inimigos silenciosos, mas também há imensas linhas de apoio que têm profissionais que podem acompanhar-vos. Ironicamente, a situação que nos pode deixar mentalmente doentes tem uma vantagem sobre a que espoletou o meu síndrome de stress pós-traumático: eu continuei sempre a trabalhar a um ritmo vertiginoso e isso deu-me todas as desculpas e mais algumas para não enfrentar o que realmente estava a acontecer. O confinamento dá-nos tempo para observar, para refletir, para olhar para nós e para os que mais amamos. Para nos cuidarmos e para cuidar dos outros.

            Olhem por e para vocês. Olhem por e para as vossas crianças. Fiquem atentos aos seus padrões de sono. Se, de súbito, começam a ter um sono mais agitado e a ter pesadelos, conversem com eles, tentem perceber o que sentem e o que pensam. Exponham-nos o menos possível ao tal tsunami informativo. Aproveitem para lhes mostrar que num contexto tão dramático como este, as pessoas que são verdadeiramente importantes, nem sempre são as mais valorizadas socialmente. Ajudem-nos a relativizar e a colocar em perspetiva este conceito dos famosos, dos importantes, dos que têm tanta visibilidade e, por estes dias, nem se veem.

            Por muito que o medo do desconhecido e do invisível nos possa afetar, acredito que cada um de nós tem dentro de si a força de cem. Acredito que em nós encontraremos respostas para as nossas angústias e estratégias que nos farão sentir que, também nós, estamos a fazer algo nesta luta que é de todos. Porque todos nós temos algo para dar, face ao tanto que estamos a receber. Que estes tempos nos tornem mais atentos, mais solidários, mais exigentes connosco e com os outros. Que o Bem prevaleça. E, por favor, cuidem das nossas crianças e dos nossos idosos que, certamente, também não conseguem verbalizar muito bem toda esta realidade que se instalou. Cuidem-se. Fiquem em casa, os que podem. E não desarmem perante os resultados menos cruéis do nosso país, quando comparado com países vizinhos. A nossa resiliência tem que ser semelhante à de um maratonista e não podemos quebrar ao quilómetro 32. Mentalmente, temos que estar preparados para resistir à tentação de descurar nos nossos cuidados, só porque aparentemente as coisas estão a correr bem. Para que corram verdadeiramente bem, temos que manter um espírito de cumprimento rigoroso até ao fim. Juntos vamos conseguir.       


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