Chrys Chrystello
Memórias de Páscoas Quinta da Bendada e Sendim da Ribeira
2.4.2. MEMÓRIAS DE PÁSCOAS QUINTA DA BENDADA E SENDIM DA RIBEIRA
Recordo com saudade, as férias na Quinta da Bendada, entre Alfândega e Sendim da Ribeira, ao lado da Quinta de Zacarias, freguesia, 8,63 km² e 92 hab. extinta em 2013, agregada a Agrobom e Vale Pereiro, zona de caça municipal, área florestal, silvopastoril e agricultura na encosta da Serra de Bornes, até à Ribeira das Cavas, Felgueiras, Agrobom, Castelo, Valpereiro e Saldonha.
Em 2017 a Quinta de Zacarias, a 5 km de Alfândega aglomera quatro explorações agroflorestais: Quinta de Zacarias; Bendada; Arquinho (Cruzeiro) e Mário Almeida, ocupando 1.108 hectares, recortada por ribeiras, linhas de água e montes ondulados. A Associação de Promoção e Preservação da Caça e as Juntas, criaram condições para a manutenção do maior número de espécies. Ficava perto da Quinta de Saldonha, freguesia, 8,63 km² e 92 hab. extinta em 2013, agregada a Agrobom e Vale Pereiro,
Ali estive com a tia-avó Berta e a prima Stela, do Azinhoso. Não havia luz elétrica (mas, ironicamente, plantaram um poste de alta tensão a cem metros da casa, com o zumbido permanente assustando as gentes simples do campo, temerosas da inovação que não compreendiam e não servia de nada).
A água corrente vinha de um poço artesiano nas redondezas. Era uma casa grande, de dois pisos, num terreno em retângulo com enorme terreiro onde havia mais três edifícios (a zona central daria para um picadeiro, se alguém se tivesse lembrado de o construir). A ladeá-la, a casa dos caseiros, em frente à casa de aprestos agrícolas, armazém, celeiro, e um edifício com dois lagares ao lado da casa.
A estrada de acesso, um estreito caminho de cabras em macadame, atravessava ribeiras, e passava por debaixo das janelas da casa. No lagar de azeite via-se o trabalho de preparação do líquido viscoso e esverdeado de apaladar a comida. Também vi fazerem vinho no outro lagar, e as uvas eram pisadas com os pés à boa maneira tradicional. Não esqueço o cheiro a mosto,
Ocasionalmente, nas alturas o rasto solitário dum avião europeu a caminho de algures, possivelmente longínquo. Punha-me a imaginar os destinos prováveis, consoante a direção que o rasto de vapor na atmosfera deixava, imaginando África, América ou a mera Lisboa que não conhecia embora já tivesse ido a Madrid. Evoco os céus, então sempre azuis sem contrails ou chemtrails, quase sempre sem nuvens, e as noites estreladas, num silêncio entrecortado pelo vento, cantigas de aves. Vivíamos com os sons simples dos animais e pássaros chilreantes, não havia rádio nem televisão, que embora já inventada e divulgada nas cidades ainda lá não chegara.
Para quê, se eletricidade não havia, a não ser na casa do Azinhoso onde havia um gerador a gasóleo, que muitas vezes tive o prazer de ligar? Comia-se à luz de velas, lamparinas ou Petromax. Levantar bem cedo como sói acontecer nas aldeias, mal o sol desponta. Depois dum lauto pequeno-almoço de pão centeio, torrado nas brasas, dava uns passeios, mas era sobretudo depois da habitual sesta, pela fresquinha, que se aprestava uma mula ou macho e ala cascos que estes montes eram indubitavelmente meus durante as horas seguintes, quase sempre sem se ver vivalma.
Havia em contrapartida livros para ler devagarosamente, como diria Mia Couto, e o tempo tinha duração mais compassada e menos rítmica. Era a alternativa a cavalgar, depois cavalgar e mais cavalgar, percorrer distâncias num raio de 10 km, bem difíceis, que ali só havia montes, vales e ribeiras. Se não fossem as oliveiras, cerejeiras, sobreiros e árvores de fruto, lembrariam rotas misteriosas na selva de África, sobre as quais já lera livros infantis ou de aventuras, porque não havia trilhos nem estradas, além dum caminho, bem pisado, estreito e poeirento que nos unia à aldeia. Um dia caí da cavalgadura no empedrado à saída do Sendim da Ribeira e não me magoei muito, mas (meses) mais tarde descobri uma grave lesão na coluna.
A Quinta da Bendada foi herdada pela viúva do primo médico do De Soto, esteve abandonada, foi alugada a um ator de telenovelas (Tó Zé Martinho), e mais tarde incorporada na de Zacarias. Hoje nem há vestígios ou ruínas das casas nas imagens de drones. Gostava de ter uma máquina do tempo e regressar a essas memórias. Os relógios haviam parado e o tempo parecia eterno, deixava-me embalar nele e vogava ao sabor da cavalgada. Atravessavam-se rios e ribeiros, escalavam-se montes a perder de vista sem sinal de gente. As aldeias, poucas e afastadas por picadas e trilhos onde não se aventuravam veículos.
Depois, ao entardecer vinha contar as proezas das cavalgadas, dar um último olhar às estrelas infindas para o dormir dos santos e justos. Ao domingo fazíamos o percurso lentamente, com a prima e tia sentadas em cima da albarda dos jumentos, de pernas à banda como era costume das mulheres, rumo à igreja mais próxima, no Sendim da Ribeira.. Na época as aldeias tinham gente e os padres iam, domingo após domingo para o evento da semana, quando se juntavam as pessoas, nos fatos domingueiros, já puídos muitos deles até ao fio, herdados do casamento, que na vida do campo só se botava fato para ir à Repartição ou à missa.
Quando os padres não residiam na aldeia (por terem várias na jurisdição e nem em todas tinham casa à ordem) faziam o circuito das aldeias e celebravam missa após missa, aldeia após aldeia, burro após burro, por entre a canícula de inverno e as neves de inverno. Guardo memória visual de sítios e gente que nunca mais vi. Quando entre 2002-05 percorri tais caminhos descobri estradas novas onde dantes havia trilhos e picadas, perdendo a imagem misteriosa e mística da juventude. Desilusão enorme.
Sendim da Ribeira, freguesia, anexa de Sardão, das mais antigas. O nome parece visigótico e existe um topónimo "castelo", associado a um castro, cujos vestígios são difíceis de identificar, ocupado por olivais, cujo azeite, é dos melhores, graças ao clima ameno do vale da ribeira de Zacarias.
A igreja seiscentista foi profundamente remodelada no séc. XX (1972). Em 2006 tinha 128 habitantes, 92 em 2011. A freguesia foi extinta em 2013, agregada à de Parada. O Sendim da Ribeira fica num buraco, no fundo dum vale, e em volta para sul: Sardão, Sto Antão da Barca, Ferradosa, para leste Parada, Vilar Chão e a norte, Castelo, Vale Pereiro, Saldonha, e para oeste Cerejais e Sendim da Serra.
Estas terras eram servidas por estradas municipais de terra batida, mas os montes circundantes tinham as estradas principais de acesso a Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros e a Mogadouro, pelo que era espantoso ver (de hora a hora, que o movimento era pouco na década de 60) pequenas luzes dos tremeluzentes faróis amarelados a atravessarem os montes, por entre os relâmpagos que iluminavam o vale. Memorável. Essas imagens também ficaram para sempre. Há fotografias que não estando em negativo ou em papel, jamais esmorecem na memória.
Da Casa do Alto, no Sendim da Ribeira (das primas do Azinhoso), guardava memórias assustadoras e só a voltei a ver em 2003. Era de lá onde se ia à missa e se dormia quando eram precisos mantimentos na Quinta e era tarde para regressar.
Lembrava-me (e nunca me esqueci), as trovoadas fortes em pleno verão durante as quais nos metíamos debaixo da cama, embrulhados em cobertores de papa, cheios de medo, a rezar a Santa Bárbara a pedir que a trovoada passasse. Muitas eram trovoadas secas, as mais perigosas, e a casa era o ponto mais alto da aldeia.O ribombar dos trovões ecoava como um temível castigo divino por sobre a cabeça dos pecadores. Por outro lado, a natureza recompensava-nos à noite, quando a trovoada estava longe. Valia a pena ver os raios a caírem a toda a volta do fértil vale. Ali, era um espanto vê-las mais ao longe, mal se ouvindo o ribombar dos trovões. Indescritível lembrança que guardo com olhos adolescentes.
Hoje ainda tremo nas trovoadas secas e recuperei no espólio da Eucísia cobertores de papa para emergências, mas não rezo à Santa (embora me tivesse apaixonado por uma inglesa Barbara, em Sydney, que de santa nada tinha), Foi na Casa do Alto que me estreei nas “lides artísticas” convidando jovens da aldeia para me ouvirem recitar e cantar do cimo das escadas, à espera que me aplaudissem. Era o grande entretenimento numa terra onde a palavra era quiçá desconhecida. Há anos encontrei esquecido no meio dum livro, um pedaço de papel com os nomes das melodias que entoava. O cantor era fraco, mas houve quem se recordasse dessas sessões (a minha Tia-avó Berta, falecida em 2002 com 95 anos).
Na década de 1960 instalaram PBX, sistema elaborado de cavilhas com doze extensões. Os tios-avós no Sendim da Ribeira com os primos (dois deles vim a reencontrar décadas mais tarde, nos Açores onde se radicaram em 1960 e em 1975) tinham uma venda ou loja na qual estava instalado o Posto da Anglo-Portuguesa de Telecomunicações ou ATP [(1968) TLP (Telefones de Lisboa e Porto) 1994 PT Comunicações, atual ALTICE]). O Posto Telefónico ATP 137 (uma mistura dos modelos mostrados, nem tão antigo como um nem tão moderno como outro) era o único contacto com a civilização.
As aldeias, tantas vezes isoladas nos nevões de inverno, avessas a mudança ou modernice não acolhiam bem o telefone e daí só haver meia dúzia de linhas, em toda a zona do Sendim da Ribeira. O saudoso PBX era de cavilhas que tinham que se colocar na ranhura. Quando uma chamada entrava, a tampinha caía e enfiava as cavilhas de dois fios nas ranhuras cujas tampas tinham caído. Depois, havia uns auscultadores de baquelite preta, pesados, com microfone através dos quais se perguntava a quem telefonava para onde queria ligar. Para um jovem, era um entretenimento delicioso, esta comunicação e saber o que se passava, ao mesmo tempo que permitia contactar “virtualmente” com meia dúzia de pessoas que habitavam nas redondezas e transmitir mensagens, notícias e avisos numa era em que os rádios mais potentes captavam bem as emissões espanholas e mal as portuguesas, quando a TV não chegara, e a luz elétrica era uma miragem de cidades e vilas.
Posto ATP Igreja Sendim da Ribeira
A TV espanhola chegou décadas antes da portuguesa. Os jornais vinham nos comboios da Linha do Douro e seus ramais, mas não havia carreiras de camionagem para os sítios mais interiores e muito menos para o Sendim da Ribeira que nem estrada tinha. No inverno, muitas vezes, isolado pois o caminho de terra batida ficava intransitável, o mundo podia acabar que só viriam a saber mais tarde. Ainda hoje me apetece viver em sítios assim (por isso vivo na Lomba da Maia, S Migue, Açores). Nunca esqueço o cheiro a carvão e as fagulhas da locomotiva nas muitas viagens que fiz de comboio a Trás-os-Montes. Do Porto ao Tua e depois no ramal em direção a Bragança tínhamos de sair, na base da Serra de Bornes em Grijó (terra do Prof. Adriano Moreira) antes de chegar a Macedo. O troço Mirandela e Bragança foi encerrado definitivamente a 15 dezº 1991. Agora, muitas décadas depois pensam em reativar linhas ferroviárias…
E é esse passado mítico que os modernos governantes me roubaram, violando as memórias da juventude. Jamais lhes perdoarei, cambada de novos-ricos, ignorantes e alarves. Juntamo-nos para salvar a linha do Tua, única no mundo mas perdemos. Foi o nosso património que dilapidaram (PS: de nada serviram os abaixo-assinados, petições, filmes, idas à Assembleia da República). A voragem capitalista da EDP e das barragens tudo soterraram.
Chrys Chrystello, [email protected] Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]. Diário dos Açores (desde 2018)/ Diário de Trás-os-Montes (desde 2005)/ Tribuna das Ilhas (desde 2019)/ Jornal LusoPress Québec, Canadá (desde 2020)/ Jornal do Pico (desde 2021)