Chrys Chrystello

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o 40º colóquio da lusofonia vai ser nas flores abril 2025

enquanto não chega abril, quando levarmos os colóquiosda lusofonia na sua edição nº 40 à ilha das Flores aqui fica uma narrativa de como eu vi as Flores 

este texto está incluído no volume 7 de ChrónicAçores disponível com imagens e ilustrações em https://www.flipbookpdf.net/web/site/9a8b5ee0dc575188c0d6c607b3824fc83f76f513202501.pdf.html#page/1


134 – PARTE 1 - A MINHA VISÃO DAS FLORES E CORVO (2013) parte 1

1.1. FLORES:

 Tem 143 km2 de superfície, 17 km de comprimento e 12,5 km de largura. A superfície da ilha é repartida por dois municípios - de Santa Cruz das Flores e de Lajes das Flores. A ilha, junto com a Ilha do Corvo, foram o Grupo Ocidental do arquipélago dos Açores. A 26 de maio de 2009, foi classificada pela UNESCO como Reserva da Biosfera. Os principais centros populacionais são as vilas de Santa Cruz das Flores e das Lajes das Flores. Dispõe de um aérodromo ou pequeno aeroporto onde opera a SATA Açores, com ligações aéreas regular com a Horta, Lajes (Terceira), Ponta Delgada e Corvo. Entre julho a agosto, a Atlanticoline assegura (de forma bem mais irregular do que o previsto nos horários oficiais) as ligações marítimas de passageiros e viaturas entre o porto da vila das Lajes das Flores (via Horta) com as restantes ilhas. Assegura ainda o transporte regular de passageiros entre as vilas das Lajes e Santa Cruz das Flores e a Vila do Corvo.

1.2. CORVO

A Ilha do Corvo é a mais pequena e a mais setentrional do arquipélago. Localiza-se no Grupo Ocidental, a 6 milhas náuticas a norte das Flores. Ocupa uma superfície de 17,12 km2, com 6,5 km de comprido por 4 km de largura.

A Vila do Corvo, única povoação da ilha, é sede do município do mesmo nome. Em 1987, as funções dos órgãos de freguesia foram assumidas pelos correspondentes órgãos municipais. Na ilha teriam sido descobertas cerca de uma centena de hipogeus (estruturas de terra cavadas na rocha primitivamente usadas como sepulturas há dois mil anos), incluindo algumas na cratera e aguarda-se o seu posterior estudo. A primeira citação desta ilha surge em 1351 no Atlas Médici como Ilha Dos Corvos Marinhos e em 1375 no mapa Catalão surge já distinta das Flores. Diogo de Teive, navegador português, tê-la-á descoberto oficialmente em 1452 ao regressar da Terra Nova. Quanto ao nome teve vários em diversos mapas: Ilha Dos Corvos Marinhos, Ilhas Floreiras, Ilha do Farol, Ilha Nova das Flores, Ilha de Santa Iria, Ilhéu das Flores, Ilha da Estátua, Ilha do Farol, Ilha Negra, Ilha de São Tomás, Ilha do Marco. Começou a ser habitada com um grupo de 30 pessoas lideradas por Antão Vaz de Azevedo da Ilha Terceira, e posteriormente um outro grupo da Terceira (família Barcelos) mas ambos abandonaram a Ilha.

Em 1548 Gonçalo de Sousa donatário das Flores e do Corvo foi autorizado a mandar escravos de Santo Antão (Cabo Verde) como agricultores e criadores de gado. A primeira Igreja data de 1570 e a partir de 1580 juntaram-se os colonos das Flores, sendo a sua primeira paróquia estabelecida em 1647 e a sua primeira administração civil data de 1832. Quando os navegadores portugueses aportaram pela primeira vez à pequena Ilha do Corvo, nos Açores, em meados do século XV, encontraram ali uma intrigante estátua de pedra, representando um cavaleiro com traços caraterísticos do norte de África. Este episódio, despercebido a gerações de portugueses, iludido pelos manuais escolares, constitui um ponto de partida fulcral para a grande interrogação: quem descobriu pela primeira vez os Açores? Sabendo-se das diferenças qualitativas, não só etimológicas, entre "descobrimento", "descoberta" ou "avistamento", importa conhecer as diferentes etapas que fizeram da gesta das Descobertas Marítimas do Renascimento mais uma consequência do que antecedência gerada no zero dos saberes e da ignorância total sobre rotas oceânicas e capacidades náuticas epocais.

Não existem provas científicas de que os Açores sejam o remanescente do mítico Continente da Atlântida que, outrora, teria sido o berço de uma próspera e culta civilização, entretanto desaparecida nas profundezas do oceano. Curiosamente, no livro de banda desenhada, O Enigma da Atlântida de Blake e Mortimer, a Ilha de S. Miguel é uma das portas de saída da Atlântida. Através dos tempos, a Atlântida foi sempre motivo de cogitações e explorações fantásticas. Não faltaram, mais recentemente, escritores, jornalistas ou romancistas e mesmo cineastas, que chegaram a reconstituir, com um esforço de imaginação, a arquitetura, o traçado e os materiais de construção da capital da Atlântida. Confabularam o vestuário, o modo de vida da população; a sua economia, as suas classes sociais, a sua religião, os seus deuses e demónios; os seus imperadores; as suas orgias, a beleza estranha da soberana desse reino submerso. Especulações e nada mais.

Platão tem sido submetido a uma das mais ferozes análises críticas, na tentativa de descobrir mais algum pormenor que conduza à localização da misteriosa Atlântida. Quiseram alguns geógrafos e historiadores ver na narrativa do filósofo grego uma alusão poética a um muito antigo conhecimento da America. O facto não é tão extraordinário como pode parecer à primeira vista, se considerarmos o arrojo marinheiro dos fenícios, e se juntarmos as recentes travessias do Atlântico por navegadores solitários em frágeis embarcações.

O historiador Pausanias diria mais tarde (150 AC)

“Existia em pleno oceano, longe, e a oeste, um grupo de ilhas habitadas por homens de pele vermelha e cabelos como crinas de cavalo”.

Narrativa extraordinária pois. Ou pura imaginação que, coincidentemente, iria encontrar eco na realidade descoberta 1600 anos depois?

Plutarco, entre os anos 40 e 120 DC, escrevia:

“Existem a oeste, no oceano, na mesma latitude da Grã-Bretanha, diversas ilhas atrás das quais se estende um vasto continente. Essas ilhas caraterizam-se pelo fato de que o sol aí brilha ininterruptamente durante trinta dias. A noite, o astro recolher-se-ia cerca de uma hora, mas mesmo nessas alturas, a obscuridade não seria total, porque o horizonte, a ocidente, ficava sempre iluminado por um crepúsculo”.

Plutarco descrevia, sem dúvida, terras próximas do círculo polar. O continente, só poderia ser a América. Juntem-se essas narrativas à hipótese de que, antes de Cristo, já os Açores e a Madeira terem sido explorados pelos fenícios, e não acharemos tão improvável o facto de que o Novo Mundo fosse conhecido na antiguidade.

A Atlântida não seria, então, o continente sul-americano? O poderoso reino a que se referia Platão não seria o império dos astecas? Convirá referir que é mais aquilo que desconhecemos do que o que sabemos sobre grandes civilizações da antiguidade. Muitas delas sumidas misteriosamente. Extintas dum momento para o outro, sem qualquer razão aparente, para além de colisões de meteoritos, aquecimentos globais ou outras causas por desvendar. As viagens de Fenícios e Cartagineses tiveram grande importância na Antiguidade para fins comerciais. As que poderiam ter levado a um reconhecimento dos Açores, foram a circum-navegação do continente africano, de Oriente para Ocidente, a mando do faraó Necho em finais do séc. VII a.C. e a viagem do cartaginês Annone, que perto do fim do século V a.C., abriu as velas de Cartago rumo ao Atlântico, ultrapassou as Colunas de Hércules (Gibraltar) e chegou ao Golfo da Guiné.

É curioso que as únicas referências ao conhecimento dos Açores, anteriores à chegada dos Portugueses, sejam fenícias e ambas relativas à Ilha do Corvo. Como eu dizia nos anos 70 num dos meus programas de rádio em Macau “Todas as coincidências têm uma causa matematicamente provável”. Neste caso podem existir também causas cientificamente prováveis. Fazendo fé na historiografia antiga, a probabilidade de os fenícios terem chegado aos Açores, é elevada.

 Humboldt refere no "Examen Critique" que em 1749, uma tempestade violenta teria abalado as fundações de um edifício parcialmente submerso na ilha do Corvo. No fim da borrasca descobriu-se, entre as ruínas, um vaso contendo moedas de ouro e cobre que foram levadas para um convento, e das quais nove foram preservadas e enviadas ao padre Enrique Flores, em Madrid, que as cedeu a J. Podolyn da Academia de Ciências de Estocolmo. Algumas moedas apresentavam a figura de um cavalo por inteiro, outras apresentavam somente a cabeça desse animal. Alguns peritos afirmaram com suficiente grau de certeza que se tratava de duas moedas fenícias do norte de África (da antiga colónia grega de Cirene ou Cirena [em grego Κυρήνη, Kurene] na atual Líbia, a mais antiga e mais importante das cinco cidades gregas da região). As restantes sete eram moedas cartaginesas.

A primeira publicação de caráter científico referindo aquelas moedas do Corvo deve-se a Johann Frans Podolyn, um numismata sueco que publicou em 1778 uma notícia intitulada Algumas anotações sobre as viagens dos antigos, derivadas de várias moedas cartaginesas e cirenaicas que foram encontradas em 1749 numa das ilhas dos Açores.

Naquele artigo, Podolyn afirma que em 1749, depois de vários dias de mar tempestuoso de oeste, que expôs parte da fundação das ruínas de um edifício de pedra numa praia da ilha do Corvo, foi descoberto um vaso de barro negro, quebrado, contendo no seu interior um grande número de moedas desconhecidas que foram levadas para um convento (provavelmente o convento franciscano de S. Boaventura, em Santa Cruz das Flores) a partir do qual foram distribuídas.

Parte das moedas foi enviada para Lisboa e daí para Madrid ao padre Enrique Flórez de Setién y Huidobro (*1701 – †1773), da Ordem de Santo Agostinho, que foi um conhecido historiador e numismata espanhol, à época o mais conhecido numismata ibérico. Desconhece-se o número de moedas existente no vaso e quantas foram enviadas para Lisboa. O Padre Flórez recebeu nove (9) moedas, depois por ele descritas e estudadas. As moedas recebidas em Madrid eram: duas moedas cartaginesas de ouro, cinco moedas, cartaginesas, de cobre e duas moedas cirenaicas, também de cobre. O padre Flórez cedeu as moedas a Podolyn quando este visitou Madrid em 1761, dizendo-lhe que as moedas "representavam todos os tipos encontrados no Corvo" e que eram as mais bem preservadas da coleção. Na notícia publicada, acompanhada por imagem das moedas, Podolyn afirma que as mesmas, com exceção das de ouro, não são raras, sendo apenas notável o sítio onde foram encontradas, já que não se conhece notícia da presença de cartagineses nos Açores, embora seja possível ligar essa presença à famosa estátua equestre e inscrição que teria sido encontrada no Corvo à época do povoamento.

Faria e Sousa na sua História de Portugal relata esta estátua citando-a como possivelmente de origem chinesa, o que levou mais tarde esse alegado inventor da história, Gavin Menzies, a usar a mesma como “prova” da descoberta chinesa dos Açores antes dos Portugueses. Este Menzies é o que dizem ser uma fraude, ao contrário desse inventonas, o loquaz e ótimo comunicador José Hermano Saraiva que se serve de qualquer facto autêntico para criar uma novela com laivos históricos.

É relatado por André Thevet, um francês do século XVI, que um descendente mourisco ou judaico encontrara uma inscrição com carateres hebraicos numa gruta de S. Miguel, durante os Descobrimentos, mas não foi capaz de a ler, alguns supuseram tratar-se de carateres fenícios. Em 1976, nesta mesma ilha, haveria de ser desenterrado um amuleto com inscrições de uma escrita fenícia tardia, entre os séculos VII e IX da era cristã. A maior parte dos historiadores continua a negar validade a esta afirmação, o que não a impede, porém, de ser verídica. No século XVI, Génébrand referiu-se à existência dum túmulo com inscrição hebraica em S. Miguel, Açores. Trata-se na realidade de carateres fenícios de Canaã erroneamente qualificados de hebraicos pela semelhança entre o alfabeto dos cananeus e o dos antigos hebreus. O texto decifrado permitiu a Manasseh ben Israel, sábio hebreu do século XVII ler a inscrição como “Mektabel Suai, filho de Matadiel” (de acordo com Pierre Carnac em “A Atlântida de Cristóvão Colombo”).

Damião de Góis escreveu na "Crónica do Sereníssimo Príncipe Dom João” que quando os portugueses chegaram à remota ilha encontraram uma estátua equestre no cume noroeste da serra, no centro da ilha, colocada sobre um pedestal quadrado.

No seu cume, que parecia servir de marco aos navegantes, estava o vulto de um homem grande de pedra, montado num cavalo sem sela. Era uma estátua profética, construída, não se sabe por quem, a partir de um único bloco de pedra e representava um homem, de cabeça descoberta, mas tapado por uma espécie de manto. As faces do rosto e outras partes estavam sumidas, cavadas e quase gastas pelo tempo e supõe-se que pela erosão dos elementos. Sobre as crinas do cavalo, o qual tinha uma perna dobrada e outra levantada, estava a mão esquerda do homem, enquanto o braço direito estava estendido e com os dedos da mão encolhidos. Só o indicador continuava aberto e apontava para o poente ou noroeste, para as regiões onde o sol se oculta, a grande terra dos bacalhaus, a América ou o Brasil, terras que ainda não tinham sido descobertas pela civilização ocidental. O rei Dom Manuel I teria mandado a Duarte d’Armas que fizesse um desenho da estátua e ordenado o seu transporte para a corte de Lisboa, mas só viria a receber pedaços do monumento, nomeadamente, a cabeça, e o braço e mão direitos, e parte do cavalo. Estas peças teriam sido guardadas no palácio real, tendo-se perdido o seu rasto a partir daqui. Na base - deixada no Corvo - existiriam algumas letras numa escrita desconhecida que foram copiadas em 1529 por Pedro da Fonseca, mas cujo teor ninguém conseguiu até hoje identificar.

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]

Diário dos Açores (desde 2018)/ Diário de Trás-os-Montes (2005)/ Tribuna das Ilhas (2019)/ Jornal LusoPress, Québec, Canadá (2020)/ Jornal do Pico (2021)

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134. PARTE 2 - A MINHA VISÃO DAS FLORES E CORVO (2013) Parte 2

2.1. Cavaleiro de basalto

A respeito do artigo Quem construiu a estátua da ilha do Corvo? (Super n.º 128 de dezº 2008), convém ter em atenção o que se segue. O autor invoca uma série de testemunhas. De nenhuma delas há um testemunho direto, porque só se sabe o que disse Damião de Góis. O Dr. Gaspar Frutuoso, bem como Frei Diogo das Chagas e outros, limitou-se a copiar o que escreveu o cronista, que apenas deve ter ouvido a história, porque se percebe pelo relato que o próprio não chegou a ver os despojos do achado. O basalto é uma pedra muito difícil de esculpir. Seria quase impossível conseguir pormenores que fizessem o cavaleiro parecer-se a um magrebino. O que aliás contrasta com o que diz Frutuoso do que afirmavam os naturais das Flores e Corvo: que a estátua “estava carcomida, com as faces do rosto e outras partes do corpo sumidas e quase gastadas”. Quanto às letras gravadas na rocha, estariam em lugar tão inacessível que teria sido necessário descer por cordas quem lhes tirou o molde. Como teria sido então possível o trabalho de as esculpir? E por que razão, sendo este episódio do tempo de D. Manuel, o conta Damião de Góis na Crónica do Príncipe D. João? Aliás, o célebre humanista não era um historiador, mas um cronista. O seu pouco rigor chegou mesmo a causar-lhe complicações com a justiça real. Que dizer das moedas achadas nas ruínas de uma casa? Que, se existiram, foram para lá levadas depois do povoamento. Das inscrições numa gruta muito grande em S. Miguel, basta dizer que nunca se encontrou a gruta sequer. E, quanto aos carateres em pedra nas Quatro Ribeiras, quase todas as pessoas que os viram afirmam ser uma formação natural. Quem quer crer nos fenícios diz apenas que “talvez” ... Quanto ao saber marítimo dos fenícios, não consta que tenham sido mais do que bons marinheiros de cabotagem. Os portugueses foram os primeiros a ser capazes de navegar sem terra à vista. Os próprios viquingues chegaram à Gronelândia fazendo escala nas ilhas Faroe e na Islândia, já então habitadas. E, da Islândia à Gronelândia (300 km), com boa visibilidade viaja-se sempre tendo a terra como referência: até meio caminho continua a ver-se a Islândia, daí para diante já se avista a Gronelândia. Daniel de Sá, Maia, S. Miguel, Açores

Diria ainda o cético Daniel de Sá a este respeito (jornal Público 20 julho 2008):

“...há outra novidade nas livrarias, que versa sobre uma famosa estátua que teria sido encontrada na ilha do Corvo pelos primeiros povoadores. Prova irrefutável de que por ali andaram cartagineses muito antes de Cristo calcorrear a Galileia. Falou dela Damião de Góis, que a descreve em pormenor, mas não a viu. Como convém nestes casos, não ficou nem um pedacinho da escultura, que teria sido levada para a corte no tempo de D. Manuel. Nem qualquer marca na ilha. E também desapareceram as moedas cartaginesas encontradas lá nos finais do século XVIII. Desaparecimentos deste tipo dão sempre jeito para uma história revista e aumentada.”

Já o célebre historiador e estudioso de fenómenos esotéricos, Joaquim Fernandes (um brilhante aluno que foi meu antigo colega de liceu, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ) responderá assim a Daniel de Sá:

“.... Pretendera beliscar uma dupla credibilidade: a de Damião de Góis, que descreve com algum detalhe, o episódio da estátua equestre encontrada pelos portugueses na ilha do Corvo, e o historiador no papel de autor do romance O cavaleiro da Ilha do Corvo, que embora em tons de ficção, fá-lo com a segurança e credibilidade que lhe confere uma investigação documental de centenas de referências bibliográficas, de Aristóteles à pesquisa atual, disponível no final do citado livro. Desde o arquiteto Duarte d’Armas, que el-rei mandou ao Corvo fazer o desenho da estátua, aos pedreiros enviados ao ilhéu com a incumbência de trazerem o monólito para Lisboa, passando pelo donatário Pedro da Fonseca, que em 1529, se deslocou ao Corvo para recuperar uma legenda em carateres não-latinos descoberta no sopé onde antes existira a estátua do cavaleiro com “traços africanos”, seguindo a descrição de Góis. E o mapa dos irmãos Pizzigani, de 1367, que confirma a tradição árabe das estátuas marco no centro do Atlântico? Ou seja, o autor da Crónica do Príncipe D. João é digno de crédito para descrever a chegada do primeiro rinoceronte a Lisboa; mas já não serve quando relata a chegada ao Paço dos destroços do monumento, que a imperícia dos pedreiros provocara.... Quatro séculos passados persistem aqueles que minimizando a integridade de Damião de Góis, tentam fazer da História um livro fechado:”

Sei-o, por experiência própria, que sempre que se quer alterar o que ao longo dos séculos vem passando por História, um enorme coro se levanta a defender a versão e o status quo. Faz parte da mente humana recusar aceitar novos factos, provas ou teorias, que contradigam aquilo em que se acredita desde a idade de formação intelectual. O primeiro romance do investigador Joaquim Fernandes, "O cavaleiro da ilha do Corvo", promete criar polémica, ao sugerir que os navegadores da Antiguidade terão conhecido os Açores muitos séculos antes de os portugueses ali terem chegado. (Jornal de Notícias 6/6/2008):

Na base da tese defendida no livro, alicerçada em anos a fio de investigações, encontra-se um dado para muitos desconhecido: quando os navegadores portugueses chegaram à ilha do Corvo, nos Açores, em meados do século XV, encontraram ali uma intrigante estátua de pedra, representando um cavaleiro com traços caraterísticos do norte de África. A existência do referido monumento até poderia ser uma simples lenda não fosse dar-se o caso de o relato da sua descoberta ter sido escrito pelo grande humanista português dos Descobrimentos Damião de Góis, cuja "obra e crédito são dificilmente questionáveis", adianta Joaquim Fernandes. Obra de ficção que, segundo o autor, "não deixa de ser também um ensaio histórico". "O cavaleiro da ilha do Corvo" levanta questões várias ("e se a tal lenda de um tal cavaleiro em pedra que aponta, do mais alto cume da ilha, em direção às Américas fosse apenas uma tentativa de insinuar a descoberta por outros povos do que Colombo definirá de Novo Mundo?", questiona o autor) numa trama conspirativa destinada a relançar o debate em torno dos Descobrimentos.

 "O livro defende, em suma, a plausibilidade da hipótese da navegação no Atlântico mil anos antes de os portugueses darem início à sua aventura marítima ", explica o especialista no estudo do imaginário português. O docente da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, tem outros projetos que aguardam publicação. O primeiro, intitulado "Poesia e o Céu", é uma revisão da poesia portuguesa de todos os tempos, inspirada pelos astros. Igualmente ambicioso é o volume "O livro dos portugueses esquecidos": em mais de meio milhar de páginas, Fernandes recorda a vida de 300 figuras nacionais dos séculos XVI a XIX que, devido a perseguições várias, se viram obrigadas a procurar refúgio noutros países, nos quais atingiram relevo em áreas tão distintas. Desde José Carlos de Almeida, o fundador da Sociedade Francesa de Física, ao Padre António de Andrade, o primeiro europeu a chegar ao Tibete, há biografias para todos os gostos. Do seu conjunto extrai-se a ideia de "um país que sempre conviveu mal com a diferença, exibindo sinais de uma intolerância, sobretudo política e religiosa, que se revelou catastrófica para o seu desenvolvimento, ao dispensar um número avultado de talentos". A lista poderia ser ainda mais vasta se incluísse figuras como Damião de Góis ou Pedro Nunes, que abandonaram o país nas mesmas circunstâncias dos restantes biografados, mas o organizador da antologia entendeu privilegiar figuras que, apesar da sua valia, foram esquecidas com o decorrer dos anos. Para investigar esta autêntica 'fuga de cérebros', Joaquim Fernandes recorreu a enciclopédias e dicionários, mas também jornais e publicações científicas, surpreendendo-se com a quantidade de 'estrangeirados' que Portugal foi acumulando ao longo dos anos. "Boa parte dessa elite foi enriquecer sociedades como a alemã ou a holandesa", lamenta o autor.

Quando os navegadores portugueses aportaram pela primeira vez à pequena ilha do Corvo, nos Açores, em meados do século XV, encontraram ali uma intrigante estátua de pedra, representando um cavaleiro com traços caraterísticos do norte de África. Este episódio, despercebido a gerações de portugueses, iludido pelos manuais escolares, constitui um ponto de partida fulcral para a grande interrogação: quem descobriu pela primeira vez os Açores? Sabendo-se das diferenças qualitativas, não só etimológicas, entre "descobrimento", "descoberta" ou "avistamento", importa conhecer as diferentes etapas que fizeram da gesta das Descobertas Marítimas do Renascimento mais uma consequência do que antecedência gerada no zero dos saberes e da ignorância total sobre rotas oceânicas e capacidades náuticas epocais. (in RTP Açores Comunidades de 13/6/2009)

2.2. Quem foram os construtores da Estátua da Ilha do Corvo?

Esta surpreendente revelação tem sido regularmente refutada pela historiografia mais conservadora, que a tem crismado de "rumor", "lenda" ou mesmo "fraude". Mas, existe uma fonte autorizada - de entre outras de diversa natureza - por muitos silenciada ou ignorada ao longo dos séculos. Quem a forneceu à posteridade tem obra e crédito dificilmente questionáveis: Damião de Góis (1502-1574), o grande humanista português do Renascimento, que descreve, com algum detalhe, no capítulo IX da sua Crónica do Príncipe D. João, escrita em 1567, as circunstâncias em que o inesperado monumento - "antigualha mui notável", assim lhe chama o cronista - foi achado no noroeste da pequena ilha, a que os mareantes chamam "Ilha do Marco". Quando? "Nos nossos dias", afirma o cronista régio, na mesma crónica, ou seja, no seu tempo de vida, provavelmente entre os finais do século XV e os inícios de XVI, no decurso do reinado de D. Manuel I e durante as primeiras tentativas de colonização da ilha do Corvo. O que era, então, esse insólito e inesperado "monumento"? "Uma estátua de pedra posta sobre uma laje, que era um homem em cima de um cavalo em osso, e o homem vestido de uma capa de bedém, sem barrete, com uma mão na crina do cavalo, e o braço direito estendido, e os dedos da mão encolhidos, salvo o dedo segundo, a que os latinos chamam índex, com que apontava contra o poente. Esta imagem, que toda saía maciça da mesma laje, mandou el-rei D. Manuel tirar pelo natural, por um seu criado debuxador, que se chamava Duarte d’Armas; depois que viu o debuxo, mandou um homem engenhoso, natural da cidade do Porto, que andara muito em França e Itália, que fosse a esta ilha, para, com aparelhos que levou, tirar aquela antigualha; o qual quando dela tornou, disse a el-rei que a achara desfeita de uma tormenta, que fizera o inverno passado. Mas a verdade foi que a quebraram por mau azo; e trouxeram pedaços dela, a saber: a cabeça do homem e o braço direito com a mão, e uma perna, e a cabeça do cavalo, e uma mão que estava dobrada, e levantada, e um pedaço de uma perna; o que tudo esteve na guarda-roupa de el-rei alguns dias, mas o que depois se fez destas coisas, ou onde puseram, eu não o pude saber". O cronista pormenoriza ainda que, “em 1529, o donatário Pêro da Fonseca, das ilhas das Flores e do Corvo, "soube dos moradores que na rocha, abaixo donde estivera a estátua, estavam entalhadas na mesma pedra da rocha uma letras; e por o lugar ser perigoso para se poder ir onde o letreiro está, fez abaixar alguns homens por cordas bem atadas, os quais imprimiram as letras, que ainda a antiguidade de todo não tinha cegas, em cera que para isso levaram (sublinhado nosso); contudo as que trouxeram impressas na cera eram já mui gastas, e quase sem forma, assim que por serem tais, ou porventura por na companhia não haver pessoa que tivesse conhecimento mais que de letras latinas, e este imperfeito, nem um dos que ali se achavam presentes soube dar razão, nem do que as letras diziam, nem ainda puderam conhecer que letras fossem".

2.3. Rumores lendários ou testemunhos factuais?

Quais as testemunhas documentalmente identificadas, sem equívocos, diretamente envolvidas no episódio histórico em torno da chamada Estátua Equestre da Ilha do Corvo? Num primeiro grupo podemos incluir: D. Manuel I, 14º rei de Portugal; Duarte d’Armas, arquiteto e desenhador da Corte, autor do debuxo do monumento; um mestre pedreiro, natural do Porto, incumbido pelo rei da missão de desmontar e transportar o monumento para Lisboa; Damião de Góis, moço de câmara, cronista régio e guarda-mor da Torre do Tombo; Frutuoso de Góis, guarda-roupa do referido soberano e irmão mais velho do anterior; Pedro da Fonseca, donatário das ilhas das Flores e do Corvo, em 1529. Acrescentemos a estes um segundo grupo de outros presumíveis testemunhos, embora não referenciados nos documentos, como Antão Vaz Teixeira, colono da primeira vaga de ocupação da ilha (entre 1508 e 1515); os irmãos de apelido Barcelos, depois de 1515, na segunda tentativa de povoamento do Corvo, talvez os mesmos que alertaram Pedro da Fonseca, em 1529, e os que acompanharam o capitão da ilha ao local da laje para copiar a legenda da estátua. Finalmente, um terceiro núcleo de individualidades, mais ou menos coevos dos protagonistas da fase da recuperação da legenda, como sejam o Dr. Gaspar Frutuoso, o primeiro historiador açoriano, contemporâneo de Damião de Góis, ainda que um pouco mais novo que este; Fr. Diogo das Chagas, escritor, que confirma a presença do donatário Pedro da Fonseca, na ilha do Corvo, em 1529; o Dr. Luís da Guarda, corregedor dos Açores entre 1548 e 1552, referenciado por Gaspar Frutuoso como tendo sido uma das pessoas ( "ou outro seu propínquo antecessor", supõe o historiador) que "pretenderam alcançar o segredo daquela antiguidade", que, segundo os naturais das ilhas das Flores e do Corvo, ainda de acordo com Gaspar Frutuoso, "estava carcomida, com as faces do rosto e outras partes sumidas, cavadas e quase gastadas, do muito tempo que tudo gaste consome".

Embora Damião de Góis nos informe, textualmente, "em nossos dias se achou", não aponta uma data. Sugere, quando muito, que a descoberta dessa "antigualha assaz antiga" - como ele a descreve – é contemporânea dele, do seu tempo. O facto de ter sido D. Manuel I a mandar investigar e a recolher o monumento aumenta essa probabilidade. Mas não é impossível que a informação tenha chegado antes à Corte portuguesa. É nesse conhecimento anterior a D. Manuel e Damião de Góis que se funda a tese da estátua do Corvo como elemento decisivo e impulsionador das explorações portuguesas de longa distância. Se o monumento existiu, de facto, quem poderia tê-lo construído?

Para o cronista régio e arquivista da Torre do Tombo, "esta gente que veio ter a esta ilha e nela deixou esta memória poderia ser da Noruega, Gótica, Suécia ou Islândia", divergindo assim da hipótese fenícia ou cartaginesa defendida pelo seu contemporâneo açoriano Gaspar Frutuoso. Recorde-se que o jovem Damião entrou ao serviço do Rei Venturoso com apenas nove anos de idade, fazendo companhia ao seu irmão mais velho, Frutuoso, guarda-roupa do soberano no Paço da Ribeira. Damião teve mestres de várias disciplinas, como mandava a refinada educação palaciana da época, começando como pajem da lança, servindo o rei à mesa. Passou também a estudar música, para satisfação do rei, um refinado melómano, estivesse em despacho ou na sesta. Mais tarde, foi moço de câmara, um lugar de intimidade no protocolo régio, sendo dos poucos que se permitia entrar na régia presença em pelote, que, ao contrário do que se possa pensar, era uma capa forrada de peles. Rezam as crónicas que segurava o bacio do penteador, enquanto o irmão Frutuoso penteava D. Manuel I... Temos, pois, reunido um séquito de testemunhos diretos, muito próximos, além dos indiretos, cuja concordância confere algum peso qualitativo à presunção da existência de facto do dito monumento, porventura perdidos os seus destroços entre as brumas da memória e das ruínas humanas.

… Recorde-se que o jovem Damião entrou ao serviço do Rei Venturoso com apenas nove anos de idade, fazendo companhia ao seu irmão mais velho, Frutuoso, guarda-roupa do soberano no Paço da Ribeira. Damião teve mestres de várias disciplinas, como mandava a refinada educação palaciana da época, começando como pajem da lança, servindo o rei à mesa. Passou também a estudar música, para satisfação do rei, um refinado melómano, estivesse em despacho ou na sesta. Mais tarde, foi moço de Câmara, um lugar de intimidade no protocolo régio, sendo dos poucos que se permitia entrar na régia presença em pelote, que, ao contrário do que se possa pensar, era uma capa forrada de peles. Rezam as crónicas, que segurava o bacio do penteador, enquanto o irmão Frutuoso penteava D. Manuel I... Temos, pois, reunido um séquito de testemunhos diretos, muito próximos, além dos indiretos, cuja concordância confere algum peso qualitativo à presunção da existência de facto do dito monumento, porventura perdidos os seus destroços entre as brumas da memória e das ruínas humanas.

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]

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134. PARTE 3 - A MINHA VISÃO DAS FLORES E CORVO (2013) PARTE 3

3.1. FLORES E CORVO UMA VIAGEM

Em 1587, o Corvo foi saqueado e as suas casas queimadas pelos corsários ingleses, que haviam atacado as Lajes das Flores. No ano de 1632, a ilha sofreu duas tentativas de desembarque de piratas da Barbaria, no atual cais Porto da Casa, que era apenas uma baía. Duzentos corvinos usaram tudo ao seu dispor para repelir os atacantes que acabaram por desistir com baixas. A imagem de Nossa Senhora do Rosário foi colocada na Canada da Rocha e diz a lenda que ela protegeu a população das balas disparadas.

No séc. XVIII, com a chegada dos barcos baleeiros norte-americanos à Ilha das Flores para recrutar tripulação e arpoadores, uma vez que os corvinos eram apreciados pela sua coragem, iniciou-se uma estreita relação com a América do Norte, que passou desde então a ser o destino de eleição para a emigração corvina e de onde chegaram praticamente todas as novidades à ilha, a qual manteve durante muito tempo uma relação mais estreita com Boston do que com Lisboa. A emigração clandestina era uma constante da vida da ilha, apesar dos esforços repressivos das autoridades portuguesas, preocupadas com a fuga ao serviço militar obrigatório e com a perda de mão-de-obra. Os corvinos pagavam um pesadíssimo tributo aos capitães do donatário. Manuel Tomás de Avelar foi o chefe da delegação de corvinos que foi a Angra do Heroísmo fazer a petição, despertando, pela sua sabedoria e maneiras, o espanto da liderança liberal da Regência de Angra. Mouzinho da Silveira, impressionado pela quase escravidão em que vivia o povo do Corvo, obrigado a comer pão de junca para poder pagar o tributo a que se encontrava obrigado, propôs a redução para a metade, do pagamento em trigo e anulou o pagamento em dinheiro, fazendo assim a felicidade dos corvinos. A impressão foi tal que Mouzinho da Silveira, hoje homenageado como patrono da Escola Básica Integrada do Corvo, anos depois escreveria no seu testamento que gostaria de estar sepultado na ilha, "cercado de gente que na minha vida se atreveu a ser agradecida".

O decreto, datado de 14 de maio de 1832, e assinado em Ponta Delgada por D. Pedro IV, reduziu à metade (20 moios) o pagamento em trigo que os corvinos faziam a Pedro José Caupers, então donatário da Coroa, e eliminou o pagamento em dinheiro de 80 000 réis. Em contrapartida, a Coroa assumiu indemnizar o donatário. O tributo apenas foi completamente abolido em 1835.

Pedro IV de Portugal elevou a povoação do Corvo à categoria de vila e sede de concelho (20 de junho de 1832). O decreto determinou que a nova vila se chamasse Vila do Corvo, e não Vila Nova como por vezes aparece grafado.

Antes disso, esteve sob jurisdição de Santa Cruz das Flores, sendo uma das freguesias daquele concelho. Atualmente o dia 20 de junho é feriado municipal.

Da cama vejo o Corvo, um rochedo em formato de bota medieval, pontos brancos no sopé, no tacão, ilha inviável na teimosia dos habitantes. Da varanda vejo uma baleia decepada no átrio do Museu da Fábrica da Baleia (que ainda não abriu na antiga fábrica de retalhar cetáceos).

 Santa Cruz das Flores tem cerca de 2 mil almas, uma vida pachorrenta neste bulício de verão. Nem imagino como será a longa invernia de mares alterosos, onde hoje há um espelho de água que me lembra a Baía de Díli, em frente a Lecidere, nos anos 70 do século passado....

Em volta só há mar até às Américas, que isto de Europa já nada tem. Se Galileu não o tivesse dito, a Terra podia ser plana, tão vasto e reto é o horizonte que se confunde com o oceano.

Parado no carro, à espera da minha cara-metade e dos seus remédios, à porta da Farmácia de Santa Cruz, vejo aproximar-se e parar, um simpático agente da autoridade numa viatura da Polícia Marítima, o qual, cortês, me chama à atenção, de que estou contra a mão.

 O mesmo me acontecera em S Jorge. Estou sempre contra qualquer coisa. Já é mania. Analisadas as instalações e de darmos umas voltas pela urbe fomos almoçar ao Boston Super Hambúrguer, bom e barato 6.00€ PAX. Ao jantar fomos ao Restaurante Rosa (logo a seguir à Igreja) com comida aceitável por 11.00€.

Depois de uma ida à piscina e ao ginásio fomos repousar cedo. O sol pôs-se por detrás de nós, detrás dos montes, vieram as estrelas e os cagarros, o marulhar calmo das ondas, contrastando com os gritinhos quase infantis e divertidos destas aves, sobre a piscina iluminada.

Ao longe há cento e tal casas alumiadas no Corvo, e mais meia dúzia a meia encosta. Vi os faróis de um carro rumo à caldeira. Parece estar aqui tão perto, essa terra de lendas e povos antigos. A Ursa Maior apontava o caminho enquanto a Ursa Menor me atraía e me confundia entre as constelações Pégaso e Oríon, esquecido que estou de olhar os céus, nomes perdidos na memória de anos idos.

 Este silêncio, esta paz, a gentileza das gentes. Ao jantar, no apinhado restaurante Rosa, os funcionários estavam preocupados pelo atraso em servirem-nos, por entre a confusão de terem de atender também duas mesas de 25 excursionistas doutra ilha. Uma terra com a dimensão pouco maior do que a Maia em São Miguel virada para o mar por todos os lados (e a atestá-lo a numerosa flotilha de barcos e barquinhos a toda a hora cruzando o canal para o Corvo), ilha esquecida pelos governos centrais e regionais (exceto agora em tempo de eleições e de alcatifar estradas e caminhos municipais).

 Apetece fugir para aqui, apesar de não haver gelados em parte alguma, porque de acordo com o que me foi gentilmente explicado “esta terra é assim”. Fugir para aqui das guerras, da fome, dos governos que nos desgovernam e passar despercebido do mundo. Terra ideal para escrever como Roberto Mesquita e Pedro da Silveira fizeram, enquanto iam ao mar buscar laranjas. Amanhã vou ao Corvo…ver grutas e sonhar com golfinhos e baleias. Da varanda continuo a ouvir a dança louca dos cagarros, cada um com seu cântico de guerra distinto….

 Ao olhar o Corvo na lonjura parecia um botim, ou mais romanticamente, um navio à medida da Jangada de Pedra do Saramago à deriva no Atlântico Norte. Se ao menos tivesse asas como os cagarros deixava-me ir mesmo sem lhes conhecer o alfabeto nem o sotaque dos seus constantes ralhos.

 A FÁBRICA DA BALEIA, ORA MUSEU EM SANTA CRUZ DAS FLORES

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3.2. COMO VI O CORVO 2013

Amanheceu mesmo em frente à janela da suíte e talvez pela primeira vez (desde que me lembro) vi o sol nascer sobre o mar, momento inolvidável de beleza e magia que iria marcar o resto do dia dedicado à viagem ao Corvo. Saímos com outras 12 pessoas num Zodiac, barco semirrígido, para uma viagem de pouco menos de 40 minutos (15 milhas) ao custo de 30 Euros por pessoa, com direito a ver grutas. O guia navegador, há 20 anos metido nisto, apoia a Universidade dos Açores e seus biólogos, e deu explicações detalhadas sobre cagarros, a pesca do atum e aspetos da vida marinha.

 CALDEIRÃO DO CORVO

A viagem correu bem sem sobressaltos, mas se vislumbrarem os prometidos golfinhos nem baleias (cachalotes). Muito calor à chegada ao pequeno cais, o Porto da Casa, onde 3 carrinhas de 9 lugares nos esperavam para levarem os visitantes ao Caldeirão e suas lagoas, ponto obrigatório de visita dos turistas, a um custo de 5 euros por pessoa, creio eu. Ainda não chegara a névoa e via-se tudo bem. Muitas pessoas desligaram-se do grupo e foram caminhar pelos trilhos, monte acima, ou monte abaixo, descendo depois os 8 km a pé até à capital da ilha e única povoação. Perguntei ao motorista como era a vida no Corvo, face às noções que fui acumulando ao longo dos anos, sobre as suas privações, a sua pouca população (menos de 400 pessoas), as longas noites de invernia, mares de vagas de doze metros, semanas sem comunicação com o mundo exterior de barco ou avião (a fibra ótica está quase a chegar). O motorista disse que agora já não era tão mau como o fora até há alguns anos, pois as pessoas tinham meios para se abastecerem e fazerem face aos cortes de suprimentos causados pela falta de comunicações marítimas. O ilhéu que parece uma bota, onde as suas gentes se confinaram à outrora chamada Vila Nova do Corvo (hoje Vila do Corvo) sem ocupação efetiva da terra como local de moradia nas terras mais altas. A altitude do Caldeirão do Monte Gordo é de 300 metros, a sua crista fica a 600 metros, mas o Morro dos Homens atinge 718 m. Tem um diâmetro de 2 mil metros com pequenos lagos, dois ilhéus compridos e cinco ilhéus arredondados tendo-se formado há cerca de 1,5 milhões de anos. Na estrada de ascensão à Caldeira havia muito movimento para uma ilha tão pequena e despovoada: carrinhas de vaqueiros, pequenos tratores, moto-quatro conduzidas por idosos, jovens e até por uma mulher (a igualdade de género já chegou ao Corvo). Na vila vimos vários camiões e equipamento pesado de construção a indicar um surto de edificação bem necessário. A ilha aparenta muita pobreza, sujidade, falta de cuidado na manutenção e pintura dos velhos edifícios, nalguns dos quais se via o carabelho, fechadura típica que só recordo ter visto no distrito de Bragança (mais propriamente em Rio de Onor). Alguns edifícios mereciam ser recuperados, e mantidos nas suas estreitas canadas que lembram aldeias medievais, como aliás é a origem do Corvo, de casas quase encostadas umas às outras (mas com pequenas ou minúsculas passagens entre elas). A degradação do parque urbano habitacional, se bem que parcialmente explicado pela desertificação humana e emigração, carece de uma política mais proativa para a sua recuperação, pois no estado atual é um mau cartão de visitas da ilha. Vi muito (mas mesmo muito) lixo atirado para as ruas e canadas, por entre os prédios seculares, muito mais do que se esperava ver numa terra que ostenta modernos ecopontos com contentores ecológicos de separação de conteúdos. É necessário fazer campanhas de sensibilização de lixo. Um mau cartaz para o turismo.

CARABELHO DEGRADAÇÃO DO PARQUE HABITACIONAL DO CORVO

Ao lado da assustadoramente pequena pista do aeródromo, estavam, três moinhos a serem reconstruídos, dois caiados e outro mantido com a pedra original à vista. Qual não é o meu espanto ao ouvir chamar o meu nome (ó professor! Ó professor!) e deparar com o mestre carpinteiro José Moniz, da Lomba da Maia, e o mestre José Alberto, da Lombinha da Maia, os quais costumam fazer todos os trabalhos de manutenção da minha casa. O mundo é assaz pequeno. Fiquei satisfeito por encontrar conterrâneos , ali, tão longe de casa e observar o importante trabalho para que foram chamados por serem especialistas no restauro deste tipo de moinho de vela triangular, muito rara nos Açores. Uma excelente recuperação do património histórico.

O resto da estadia no Corvo foi passado em curtos passeios a pé na pequena vila, entrecortado por um almoço na Traineira, único bar e restaurante em funcionamento na ilha naquela data, depois de outro mais moderno mesmo sobre a pista de aviação ter falido. A ementa com 4 alternativas e sobremesa foi económica, 8,50€ PAX. Muito calor preencheu esta estadia. Havendo ainda tempo antes de reembarcarmos para observar a manobra de carga de gado num navio que chegara de manhã com mantimentos. Curioso ver a vaca a ser transbordada. Dantes era bem pior e mais desconfortável para os animais..

   PORTO DA CASA TRANSPORTE DE GADO ATUAL E DANTES

A viagem de regresso foi mais agitada, contra o vento, e ondulação mais forte com o semirrígido a bater bem na mareação. O momento alto surgiria na visita a pequenas enseadas, ilhotas e quedas de água espantosas em grutas. Senti-me verdadeiramente transportado para o cenário de Os Salteadores da Arca Perdida…

GRUTAS E ROCHAS NA COSTA DAS FLORES GRUTA NAS FLORES

Uma rocha furada em círculo evocava o dedo de deus na costa de Toledo no norte de São Jorge, mas havia outras peças da arquitetura da natureza com uma beleza que só ela consegue.

 [interromperam-me os cagarros com os seus cânticos de velhas rezingonas, parece que falam ou ralham entre si, e depois surge sempre outro com um cântico diferente, antes de todos se calarem por instantes, e recomeçarem a agitada conversação…] Misturar uma queda de água sobre a entrada de uma gruta é de uma suprema beleza. Noutro caso, uma gruta aberta dos dois lados (quase que dava para o barco passar em ambas as entradas) a montanha descendo até ao nível do mar, interrompendo o maciço rochoso para se observar a água do mar de um azul-turquesa mais próprio dos Orientes exóticos e do Mar pacífico, criando uma enorme mancha turquesa à superfície e prolongando-se sob o mar. Havia formações rochosas com formato e feições de animais sempre com o pano de fundo do Corvo em forma de bota de um lado, e do outro a pipoca das Flores. Nessa tarde repetimos o jantar no restaurante Rosa, mas o preço já foi de 14.00€ PAX. As imagens falam melhor do que as palavras que perdi quando vi o segundo amanhecer no dia 28.

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]

Diário dos Açores (desde 2018)/ Diário de Trás-os-Montes (2005)/ Tribuna das Ilhas (2019)/ Jornal LusoPress, Québec, Canadá (2020)/ Jornal do Pico (2021)

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134. parte 4. FLORES TURISMO 2013

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4.1.

O sol ainda mais belo, num céu quase desprovido de nuvens para mais um glorioso dia de férias nas Flores, dia em que finalmente nos faremos à estrada para conhecer os seus mil e um recantos encantadores.

Saindo de Santa Cruz fomos ao Monte e visitamos o parque florestal de recreio Paulo Camacho, antiga Reserva Florestal de Recreio da Fazenda de Santa Cruz. Ali vimos gamos, faisões de oito subespécies diferentes, galinholas, codornizes, pavões, melros, patos, gansos, coelhos e várias árvores nativas e algumas invasoras, devidamente assinaladas. Havia também um viveiro de truta arco-íris. Um local extremamente bem tratado, com amplas facilidades para piquenique e para crianças, apenas a uns minutos de Santa Cruz.

RESTAURANTE POR DO SOL - FAJÃZINHA (SÓ TINHA VISTO ALGO SIMILAR EM PALHOÇA, FLORIANÓPOLIS, ESTADO DE SANTA CATARINA, BRASIL -

Descemos à Ponta Ruiva, numa estrada nova, curiosamente marcada a tinta branca no pavimento, com dizeres alusivos aos abusos do Presidente da Junta. Esta manifestação pictográfica prolongava-se por centenas de metros listando todos esses alegados abusos. Uma forma deveras original de fazer campanha eleitoral. Subimos então aos Cedros (mais um nome que se repete de ilha para ilha, numa total falta de originalidade toponímica) sem nada a assinalar exceto o facto de podermos ver bem como era delgada a Ponta Delgada das Flores, numa fajã que se estendia até ao Farol (da Ponta) de Albernaz construído em 1925, aparentando muitas semelhanças com o derrocado Farol da Ribeirinha no Faial, atingido pelo sismo de 1998, embora este tivesse apenas um piso e uma bela espraiada vista sob a costa oeste. Uma criança bem pequena deliciava-se numa minipiscina transparente, enquanto o resto do pessoal em serviço, se mantinha circunspeto impedindo que os abeirássemos e lhes pedíssemos autorização para uma visita a um dos faróis mais ocidentais.

 Dali se avistava o ilhéu de Maria Vaz, antes de se começar a subir uma estrada de terra batida rumo ao Pico da Burrinha. A estrada marginava a caldeirinha, uma pequena lagoa perto da Vigia da Rocha Negra...descemos depois pela Estrada dos Morros rumo às Fajãs. Dado ser hora de almoço rumou-se à Fajãzinha, onde há 18 meses ocorreram trágicos desabamentos de terras e inundações, causadas pela Ribeira Grande, sendo bem visíveis as derrocadas ocorridas do miradouro Craveiro Lopes, por cima de cinco ou seis quedas de água magistrais que alimentam a Ribeira do Ferreiro e Ribeira Grande.

Na Fajãzinha fomos até junto ao mar para experimentar o afamado Restaurante Pôr do Sol, com uma decoração típica, recheada de instrumentos e artefactos da primeira metade do século passado, desde telefones a ferros de brunir, lamparinas, rádios, etc. Excelente e saborosa comida com vista que promete inolvidáveis momentos a observar o pôr-do-sol. O preço de 14.00€ PAX foi apropriado ao ambiente e comida.

Após o almoço, vista a minipraia rochosa, regressamos à estrada e desviamos para a recuperada Aldeia da Cuada, maior do que se imaginava, um lugar à medida do isolamento da Ilha das Flores. Abandonada nos anos 60 quando os seus habitantes emigraram para a América, a Aldeia foi recuperada por Teotónia e Carlos Silva que sabiamente ali se estabeleceram fazendo a ligação entre passado e presente, recuperando a traça rural das casas de pedra e adaptando-as às atuais necessidades de modernismos como eletricidade e casas de banho. Está rodeada de loureiros com o perfume adocicado da cana roca. Existem mais de dezena e meia de casas recuperadas espaçadas por entre calçada e caminhos de terra. Aldeia ecológica, privada, com a proibição de fumar dentro dela. Por isso, não me pude demorar muito…

ROCHA DOS BORDÕES CALDEIRAS FUNDA E COMPRIDA NÃO SÃO OS BORDÕES (MORRO DOS FRADES)

Dali partimos para a Fajã Grande que impressionou por ser bem maior, bem pintada e tratada, muitas casas em bom estado de conservação, mansões modernas e uma avenida à beira-mar, rodeando uma enorme extensão de lava negra como a do Pico (junto ao Cachorro e Lagido), cobertas de pequenos pontos verdes de plantas que teimaram em crescer no seio da própria rocha. Também de rocha era a praia sem areia. De seguida, rumo a Mosteiro com casas cheia de arcos e pouco mais de realce, para logo após sermos confrontados com o impacto da magistral Rocha dos Bordões, uma formação geológica, caraterizada por enormes colunas de basalto, localizado no sítio denominado por Cabo Baixo das Casas. Trata-se de um imponente acidente geológico único do seu género nos Açores, que se carateriza pela solidificarão da rocha basáltica em altas colunas prismáticas verticais de forma alongada. Por estas rochas basálticas descem vários cursos de água que à medida que vão descendo a formação geológica se juntam para dar forma a uma queda de água.

Junto do sopé desta formação existe outra singularidade geológica a que foi dado simplesmente o nome de Águas Quentes, que são na sua essência caldeiras ferventes de água sulfurosa de pequena dimensão. Estávamos em pleno coração da ilha, com a Caldeira Funda e a Caldeira Comprida, seguidas da Caldeira Seca e da Caldeira Branca. O Vale do Pico dos Sete Pés impressiona. Aliás, esta ilha cuja altitude máxima é de 915 no Morro Alto, deixa a sensação de ter a maior parte das suas belezas lá nas alturas, por vezes, assustadoras com estradas estreitas orlando descidas a pique para o mar... Passámos pela Testa da Igreja, um acidente geológico a 812 metros de altitude perto do Pico da Sé, Morro Alto, Pico da Burrinha e Pico dos Sete Pés. Ali nasce a Ribeira de Badanela. As Flores são uma ilha bem altiva, maior do que parece pelas suas dimensões, majestosa nos seus vales e sobranceira nas suas elevações. Descemos de novo aos Cedros quase sem se perder de vista o Corvo.

Enquanto escrevia chegava o barco que ontem nos levou ao Corvo e apetecia perguntar-lhes, “viram algum golfinho ou cetáceo?” … decerto que não, publicidade enganosa…Vinha também uma pequena traineira lançar as redes numa enseada em frente ao Hotel para de manhã voltar, recolher o peixe pequeno que servirá de isco para o atum. Antes de nos deitarmos, bandos de cagarros cantavam a sua melopeia estranha e nós resolvemos fazer uma experiência e colocamos o som de uma gravação dos cagarros de Santa Maria na varanda, mas os resultados foram o oposto do desejado. Amedrontados, os cagarros desapareceram todos silenciosamente desta ameaça gravada. Seria isto sintoma de que não entendem a fala dos de Santa Maria? Seria por temerem outros bandos que não reconheciam? A dúvida fica para um ornitólogo resolver. Ao jantar, repetimos o Boston Hambúrguer onde pagamos 5,65€ PAX.

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4.2. FLORES TURISMO 2013

Na manhã de dia 29 houve um novo nascer do sol, diferente dos anteriores pois havia uma estreita, mas longa camada de nuvens pairando no horizonte. Começou por mostrar-se por entre as nuvens, ora se descobrindo, ora se escondendo. O mar continuava no calmo marulhar de plácidas águas e os pombos e pardais debicavam restos ou migalhas no jardim do Hotel em frente ao salão de jantar.

Se ontem já víramos centenas de melros por todas as estradas onde passamos e uma boa dezena de coelhos bravos de pequeno porte, esta manhã apenas se ouviam pardais. Até agora não se viu um único milhafre ou aves semelhantes predadoras que são visão frequente nas ilhas orientais. Investiguei e consta que não existem aqui aves de rapina [apenas no Corvo e Flores não existe esta espécie].

Este bucolismo de acordar a apenas dez metros do mar em frente a um rochedo com outrotanto de altura, coberto de urze é uma imagem que decerto vai perdurar. Na varanda virada a oriente existem outros rochedos, mas quase desprovidos de verduras e com reentrâncias onde a água faz poças constantemente renovadas, com pequenas ondas que se entrechocam com pequenos leixões ou farilhões entre os dois rochedos. Apesar da maior parte destes ilhéus florentinos terem nomes, estes dois são demasiado pequenos para terem sido batizados. O de maior vegetação podia ser o Ilhéu dos Cagarros (pois nele existem vários ninhos) e o das Poças por ter sido ele que me fez salientar o facto de eu já não conseguir recordar em detalhe o princípio dos vasos comunicantes da Física que ali estava em plena demonstração ao vivo e em direto.

Em frente, o Corvo desperta, leve e lentamente, já banhado pelo sol nascente, e assim permanecerá até ao ocaso. A depressão de terreno junto ao mar é - de facto - o único local suficientemente recortado para ter sol todo o dia no verão. Também é o menos inóspito de toda a pequena ilha e quem sabe se não foi essa exposição ao sol o que motivou que os habitantes aportados a esta ilha inicialmente se fixassem aqui? Podia ficar aqui neste belo ponto do mapa a desfrutar desta paisagem e aguardar a chegada do inverno com as suas ondas de 8 a 10 metros que devem banhar a piscina e o jardim aqui por baixo da varanda da suíte.

Santa Cruz das Flores, um dos locais mais ocidentais de toda a Europa, está consequentemente mais perto do Canadá e dos EUA do que qualquer outro para uma pessoa como eu se perder na alvura das páginas e debitar lirismo. Desde Timor (1974-1975) que não vivia tão perto do mar (em Macau a distância do delta era um pouco maior, uma avenida e um passeio). Em Timor havia bem perto de casa o crocodilo sagrado que criou a ilha, aqui poderíamos criar a lenda dos cagarros como progenitores desta ilha florida. Acabemos com a divagação pois o pequeno-almoço chama. Sonhar ainda continua a ser gratuito e o governo ainda não instituiu nenhuma taxa. Todo este Hotel das Flores (INATEL) de 4 estrelas é decorado com fotos a preto e branco, de tamanho variável, relativas a vida subaquática da autoria de Nuno Sá, fotógrafo consagrado internacionalmente pela sua atividade fotográfica submarina. Parabéns pela bela decoração.

Saindo de Santa Cruz na direção sul tivemos a sorte de ver um avião Q 400 Bombardier da SATA a aterrar no horário habitual das dez horas da manhã. Seguimos depois para o impressionante miradouro da Fajã do Conde, bem pequenina lá em baixo do outro lado do Morro de Santa Cruz e cujo acesso nem quero imaginar embora parecesse haver uma estrada de acesso…lá no fundo, bem em baixo…

Aqui seguimos pela estrada que corta a ilha ao meio, passando pelo Pico da Casinha e seu miradouro, bem como inúmeros outros miradouros até chegarmos à Caldeira da Lomba, já visivelmente eutrofizada. Depois, entre a Lomba da Vaca e o Pico do Touro passamos pelo Morro dos Frades, tornando a ver, agora de outro ângulo, as Lagoas Funda e Comprida., seguidas da Funda e Rasa antes de descer à Costa do Lajedo (Ponta das Cantarinhas, Águas Quentes, e Ponta Negra).

O pior foi no caminho da Costa do Lajedo para o Lajedo. Todo o monte era alvo de enorme intervenção (provavelmente efeito de derrocada) e a estrada em terra para o Lajedo estava em obras, ali mal passava um carro entre o abismo e os montes de brita deitados na parte protegida da estrada. O carro resvalava e fizemos a 5 km/h aqueles metros, sem hipótese de retroceder. O carro a deslizar para o lado sem o poder controlar e o declive ali mesmo ao lado a meros centímetros das rodas…foi assustador…, mas não havia já alternativa, para trás nem pensar e para a frente eram aqueles 20 ou 30 metros com menos de dois metros de largura de brita solta…

  LAJEDO

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]

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134. parte 5. FLORES TURISMO 2013

CASA DO REI, RESTAURANTE NAS LAJES MUSEU ETNOGRÁFICO LAJES QUEDAS DE ÁGUA DA RIBEIRA GRANDE

Nada se encontrou de relevante sobre o Lajedo, muito quente e pequeno, de ruas e vielas bem estreitas, casas inclinadas pela subsucção das placas onde está assente, caminhando lentamente para o fundo. Foi dos sítios onde mais se notava o deslizamento do solo, e os telhados inclinados face ao nível da rua, sinal de que as fundações estavam a abater. Ficamos felizes por poder sair dali por outra via, asfaltada, desistindo de ir à Rocha Alta e à Costa, apesar de termos entrado uns quilómetros por essas estradas adentro, com montes abruptos e sempre muito íngremes, em que tão depressa se está ao nível do mar como se roda a 600 metros de altitude. Após o Pico Negro seguimos pela maior reta da ilha rumo às Lajes, e à sua minúscula praia da Calheta. Esta mania de duplicar os nomes de outras ilhas e até da mesma: Fazenda (de Santa Cruz das Flores) e Fazenda (das Lajes das Flores), Monte de Santa Cruz e Monte das Lajes…duas Lagoas ou Caldeiras Fundas, uma ao lado da Comprida e a outra ao lado da Rasa. Confusos? Também nós. Passou-se pela Fazenda das Lajes sem descer à Ponta do Capitão, na Lomba sem se ir às Portas da Fajã, nem à Furna dos Incharéus, à Furna Jorge ou à Ponta da Caveira e rapidamente estávamos em Santa Cruz, sãos e salvos.

Constatou-se que a GALP há dias que tem as bombas fora de serviço (avariadas? Ou sem combustível?) e tivemos de ir ao outro lado do aeroporto, à Azoria reabastecer (meio depósito para mais de 300 km). Não sei haveria mais postos, mas raros vimos pelos caminhos todos que percorremos. Os bares, snack-bar e restaurantes que vimos nas Lajes não me agradaram, vá-se lá saber por que razão, e levaram-nos a escolher a Casa do Rei, restaurante de uma alemã (suíça, luxemburguesa?) mesmo na entrada da vila das Lajes, com vegetais biológicos ou orgânicos. Apesar de só abrir ao público pelas 18 horas condescendeu em servir-nos. Pouco depois entrava mais um casal (reconhecemos que estavam hospedados no nosso Hotel) e depois ainda mais um outro. A comida esmerada e saborosa foi rapidamente servida logo acabada de confecionar. A casa de teto antigo e parede de tabique estava bem decorada, música dos anos 60 (Simon & Garfunkel, Joan Baez, etc.) num total de seis a oito mesas e capacidade para cerca de 30 pessoas. Apesar do preço 14.00€ PAX valeu a pena. A tarde avança no Hotel e a mãe e filho deliciam-se, tal como ontem, sob o sol na piscina do Hotel. Hoje, as temperaturas rondaram outra vez os 30 ºC nas Lajes, mas aqui rondam agora os 24 ºC.

Mais uma vez constatei ao chegar ao quarto que as mulheres da limpeza não tinham esvaziado nem lavado o cinzeiro cheio de água. Pergunto-me se o sindicato do pessoal técnico de higiene da indústria hospitaleira (ou lá como se chamam) será antitabagista e as proíbe de limpar cinzeiros ou se é mera incúria das senhoras. Pequenos detalhes que nunca me escapam para depois os reportar ao Trip Advisor.

Antes de sairmos das Lajes andamos em busca de Artesanato sem grande sorte pois o único local tinha apenas mantas, e bordados (tipo Doyles) e acabamos ainda por descobrir o Museu Etnográfico numa casa tradicional, mas bem restaurada, cheia de utensílios e mobílias de tempos idos, numa bela coleção etnográfica.

No rés-do-chão havia uma oficina de carpintaria e outros mesteres com equipamentos de várias eras e apetrechos agrícolas de antanho. Mais abaixo, a Câmara Municipal recuperara outra casa onde outrora funcionara uma Manteigaria e Queijaria onde se podia observar como antigamente se fazia manteiga e queijo em moldes quase artesanais, num belo exemplo de preservação da memória e da cultura do povo.

A nossa guia oficial era micaelense como pudemos logo constatar ao ouvir “papeles” e aquela difícil conjugação verbal que troca am por em (levarem em vez de levaram, comprarem em vez de compraram) … A miúda, aqui deslocada nas Flores há dois anos, era tão solícita e prestável que nem tivemos coragem para a corrigir, orgulhosa que estava da sua herança micaelense.

E assim estão a terminar os cinco dias de descanso anual, e destas curtas férias no Grupo Ocidental, com o pesar habitual de terem sido tão curtas, embora com a satisfação de terem servido de recompensa para um ano difícil de trabalho, com tempo invernal inclemente e a continuação do ataque governamental aos assalariados e pensionistas. O regresso à dura realidade chegará de manhã, mas levamos na retina imagens de uma ilha diferente de todas que já conhecemos. Recordaremos as milhentas subidas íngremes e descidas ainda mais assustadoras, muitas vezes sem “safety rails” ( de proteção), nem renques de hortênsias a separarem-nos dos abismos, a pique sobre fajãs, e outros lugarejos perdidos da ilha pontilhada, aqui e ali, por casas habitadas e gentes ciosas da sua ilha e das suas origens.

Como atrás disse, o único artesanato, e está em vias de extinção, era o de mantas de retalhos e bordados sem grande imaginação e menor variedade, como nos explicou uma setuagenária nas Lajes na única loja de artesanato visível e anunciada. É pena que a arte e a tradição do artesanato se estejam a perder sem haver quem siga as suas pisadas.

Uma ilha cheia de flores e muita água a cair dos seus inúmeros picos. Terra de contrastes, pejada de subidas e descidas com montes e mais montes que pareciam bem altos, vales profundos, fajãs, pequenos bosques, montes sem vegetação, estranhas formações vulcânicas como a majestosa Rocha dos Bordões e outras aparentemente semelhantes mas geologicamente distintas, o impressionante miradouro Craveiro Lopes rodeando cascatas, quebradas e derrocadas, o vale costeiro ou fajã sob o miradouro suspenso da Fajã do Conde, tudo lembrava a resiliência das gentes, a sua fragilidade perante os omnipotentes elementos, mas há uma coisa que parece faltar nesta ilha.

Apesar das muitas estradas e caminhos municipais razoavelmente asfaltados, para tão pouca gente, pela omnipresente Tecnovia, apesar de algumas construções modernas como o futuro centro Cultural das Lajes (em fase de acabamento), parece faltar massa crítica capaz de promover um maior desenvolvimento económico que liberte esta ilha da estagnação e da sangria que a constante saída dos mais jovens impõe. É imperioso criar condições para que não sejam obrigados a partir, a emigrar para outras ilhas maiores e com maiores oportunidades. É preciso reinventar formas de os fixar aqui sem ser apenas nos meses mais buliçosos de verão e turismo (junho a setembro). A continuar assim e à medida que a população envelhece sem que os jovens aqui se fixem, arriscamo-nos a assistir ao lento despovoamento e à inviabilidade económica destas ilhas mais pequenas, tanto mais que o governo central (e agora também o Governo Regional) insiste em fechar serviços e valências desde correios a tribunais, finanças e centros de saúde.

Por outro lado, esta ilha e a do Corvo são sempre as sacrificadas quando há avarias de barcos no verão, e no inverno são as dificuldades próprias destes mares que os obrigam a ficarem, por vezes semanas, sem receberem mantimentos e ligações ao exterior. Custa-me imaginar que todos os esforços e abnegação deste esforçado povo ao longo de cinco séculos se venha a perder e se possa caminhar para o fim da civilização florentina açoriana. É uma pena imaginar que um dia - num futuro não tão distante como parece - estas ilhas sejam como as casas da Aldeia da Cuada, à espera de uns alemães, holandeses, portugueses ou outros que venham cá para as comprarem e tornarem rentáveis. Não tenho poder, nem financiamento, nem outros - nem mesmo ideias - capazes de alterarem este rumo, mas as ilhas menores do arquipélago rumam lentamente para a sua eventual extinção. É uma pena que locais paradisíacos como estes que tantos escritores de valor produziram não possam gerar uma espécie humana que os viabilize economicamente sem se tornarem em cidades-casino como Macau ou cidades perfeitas como Singapura e Hong Kong, mas sem alma. Serei eu o último moicano ou o último abencerragem da geração romântica? Espero bem que não e que estas duas ilhas do grupo ocidental possam progredir e viver numa economia plena, responsável e sustentável, bem como as restantes ilhas do arquipélago. Enquanto me preocupo com o futuro das ilhas, de casa em São Miguel dizem que cadela Leoa está bem, e vem a notícia prevalecente do dia, da semana, do mês, do ano, a da ida ontem à noite do cantor popularucho, o celebrado e afamado cantante pimba Quim Barreiros, à Lomba da Maia, provocando engarrafamentos e uma avalanche de gente como nem os idosos conseguem recordar. Jamais no passado se registou um evento desta magnitude. Isto ilustra o povo que temos, as diferentes noções de cultura.

Quem me ler pode bem chamar-me elitista, pois desde o Coliseu de Roma que o povo sempre preferiu este tipo de “cultura”. Não sei quem patrocinou a vinda do “cantante” que deve ter custado uns bons milhares de Euros, mas em véspera de eleições pode ser voto certo. Um investimento de excelente retorno, dirão os profissionais da política. Infelizmente, neste mundo Quim Barreiros, Tony Carreira e outros mexem apenas com a pequena economia - a dos pobres - sem trazerem valor acrescentado à macroeconomia local ou regional. Se bem que o valor da sua atração se possa medir em votos, nada irá acrescentar para o futuro e sobrevivência das ilhas e dos enormes desafios da pobreza, do desemprego, do alcoolismo, droga e criminalidade crescentes que, lentamente, vão corroendo o tecido social que manteve o arquipélago imutável ao longo dos séculos.

Infelizmente, estes “circos” populares ou popularuchos servem apenas para opiar ainda mais o povo iletrado, inculto e ignorante que continua a votar naqueles que melhor o exploram.

Um novo tipo de feudalismo e de escravatura que visa perpetuar o fosso entre os que “têm” e os que não conseguem a alforria. A massificação da cultura “dita popular” versus a redução abrupta dos orçamentos culturais (das artes em geral, ao teatro, à literatura, etc.) quer perpetuar o mínimo denominador comum de iliteracia. Um povo iletrado não pode ser livre nem preserva a sua autonomia, antes permanece subjugado e submisso a todos os que o espezinham. Eu aqui, na Ilha das Flores, preocupado com o futuro que ameaça tornar-se uma repetição do passado: os senhores nos seus castelos e os servos da gleba esmifrando as migalhas que lhes atiram das ameias, eternamente gratos, de chapéu na mão a agradecer tanta benesse e caridade. Claro que assim, nem o país, nem as ilhas progredirão, pois, a manutenção do “status quo” preserva a ordem estabelecida, e pessoas como eu nem chegam a ser convidadas para bobos da Corte. A crítica mordaz da alienação não agrada àqueles que são objeto da sátira e da jocosidade de quem vê o mundo numa moldura maior do que as mentes tacanhas dos que detêm o poder. Até nisto a História se repete e poucos foram os que do olvido e da lei da morte se libertaram, numa paráfrase livre desse épico que foi Camões. Resta-me lavrar aqui o meu desacordo e continuar a sonhar com a utopia (por isso, nunca conseguida) de um mundo melhor, mais justo, mais equitativo que é exatamente o oposto daquilo a que vimos assistindo nestas últimas décadas.

Possa eu continuar a contar livremente esses sonhos, essas utopias, sinal de que os senhores do mundo ainda não calaram todas as vozes. Aqui não é o Haiti (como dizia o Caetano Veloso) nem a Coreia do Norte e ainda vou tendo liberdade de pensar e de me exprimir. O meu voto continua sem estar à venda mesmo que o seu valor seja meramente estatístico e não garanta nenhuma representatividade eleitoral. Controlado, vigiado, escutado, analisado e dissecado vou resistir enquanto puder (i.e., enquanto viver) a ser um mero píxel nos ecrãs dos controladores globais que nos programam a seu bel-prazer e não será pelo medo que estragarão os momentos livres e felizes que passei aqui no grupo ocidental dos Açores.

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]

Diário dos Açores (desde 2018)/ Diário de Trás-os-Montes (2005)/ Tribuna das Ilhas (2019)/ Jornal LusoPress, Québec, Canadá (2020)/ Jornal do Pico (2021)

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134. parte 6. FLORES TURISMO 2013

Acordei como habitualmente pelas 07:15 e aguardei o aparecimento do astro-rei. Este Hotel subestima o nascer do sol e devia fazer dele um cartão-de-visita. Tal como nos outros dias, sou o único hóspede a pé a estas horas e a ver o sol nascer. Este sentimento de partilhar com ele um novo dia com esta vista do Atlântico Norte sobre a Ilha do Corvo cria um estado de espírito revigorado, dando alento para enfrentar as agruras quotidianas, sendo para mim a maior, esta noção de imponderabilidade terrena balançada com a certeza de ter de deixar a ilha ainda hoje.

Como costumo dizer, sou infiel ao arquipélago. De cada vez que conheço outra ilha apetece-me deixar ficar tudo e viver nela. Admito que o rochedo do Corvo é demasiado pequeno e inóspito para ali ficar a viver, mas...nas Flores (um pouco maiores do que Santa Maria) não sinto a claustrofobia das ilhas pequenas. O acidentado terreno, a variedade geomórfica e o sentimento de inspiração criativa fazem dela uma ilha onde poderia viver tal como vivo na Lomba da Maia. Há uma atração telúrica aliada à companhia permanente do Corvo nesta metade oriental da ilha. A outra metade virada ao continente norte-americano já não tem a mesma atração. Sei que vou deixar estas duas ilhas, mas farei como todos os açorianos: levarei um pouco delas comigo, farão parte da minha bagagem como Santa Maria em 2006, Faial e Pico a partir de 2007, S Jorge após 2008. Em todas me revejo um pouco, em todas me sinto em casa o que explica as 25 páginas manuscritas em apenas 4 dias.

Sou, de facto, um ilhéu e apesar de a pátria estar distante em Sidney e da mátria ser em Bragança de montes e neves, sei que - desde há muito - a minha vida é indissociável destas 7 ilhas (falta-me agora apenas a Graciosa e a Terceira) que conheço e adotei como se fossem minhas desde a memória inicial dos tempos. Afinal não é preciso nascer-se nos Açores para se ser açoriano. São Miguel começa a ter os mesmos problemas do Continente português, enquanto as ilhas mais pequenas, embora com menos serviços públicos, menos gente e menos valias culturais, continuam a ser pequenos paraísos por descobrir, onde, por vezes, se sente que o tempo parou, mas onde ainda é possível coexistir com os nativos e partilhar as suas belezas. Aqui, ainda se tem a sensação de estar tão longe do mundo e dos seus problemas que a vida em paz parece ainda possível, e nesta idade, viver em paz é um bem demasiado precioso para se desperdiçar.

No fundo, em São Miguel, na Lomba da Maia, vivo recluso no meu “castelo” mantendo uma política de boa vizinhança com os que me rodeiam, sem que interfiram na minha vida ou eu na deles… esse equilíbrio seria possível nestas ilhas ou noutras (à exceção do Corvo com os seus quase 400 habitantes. A Lomba tem 1200 votantes). Sinto, por vezes, a falta da família e amigos, dos quais gostava de receber mais visitas e mais frequentes, em vez de ser eu a arcar com as despesas todas dos reencontros. Há a necessidade de falar, trocar ideias e impressões com outros seres vivos que partilham de alguma da minha inquietude perante o mundo, mas a tranquilidade modorrenta desta minha vida de expatriado australiano vale bem a pena, enquanto puder ser compensada duas vezes ao ano com os Colóquios da Lusofonia, que sonho trazer às Ilhas do Triângulo e às Flores. Terei de inventar meios de sair das ilhas mais vezes, sem nunca as deixar para trás. Afinal, para mim, elas são Ilhas-Filhas, que trago a reboque, colar multifacetado de vivências que constituem já a essência do meu ser.

Espero que esta vinda às Flores e Corvo sirva de retemperadora inspiração para mais um inverno cinzento e molhado que deprime e anquilosa a mente e o corpo e, por isso, irei fazer com que esta experiência enriquecedora perdure, dando-me forças e alento para um novo ano. Não me queixo, pois, a vida tem-me proporcionado vivências inolvidáveis e variadas em todos os cantos do mundo, ao contrário de muitos que nascem e morrem confinados à pequenez das suas mentes e dos locais onde vivem. Tal como este mar rico em abundante peixe, espero que a vida me continue a proporcionar a facilidade de pescar novas experiências em mares para mim desconhecidos. O oceano pontilhado de pequenos pontos, barcos de lazer, de turismo e de pesca, e de repente, ainda sem ruído avisto a sombra, curvando-se nos céus entre o Corvo e as Flores, do pequeno avião que nos há de transportar mais logo. Entrou pelo norte da ilha permitindo mais uma sessão fotográfica diferente. Sei que a ilha tem condições adversas no inverno, mas esta semana de verão foi divinal, com um mar chão que mais se assemelhava a um lago imenso, tornando estas ilhas ainda mais apetecíveis. Este silêncio quase absoluto entrecortado pelo sussurrar do mar sem ondas é revigorante. As borboletas, os zangãos, as pequenas aves saltitando entre os rochedos são uma noção de equilíbrio que parece ancestral, mal se notando a presença humana das 3800 almas que aqui vivem espalhadas pelas duas vilas, aldeias e fajãs onde a pesca e a agricultura continuam a ser o quotidiano das pessoas, como sempre foram desde que há cinco séculos aqui arribaram.

As Lajes (das Flores) têm 70 km2 e 1502 habitantes divididos por sete freguesias, enquanto Santa Cruz tem 72 km2 e 2493 pessoas em 4 freguesias. Distam 283 km de São Miguel, 336 de Santa Maria, 192 km da Terceira, 150 km da Graciosa, 144 km de S. Jorge, 135 km do Pico e 13 do Corvo.

Deve ser uma santa vida ser controlador de voo nas Flores e no Corvo, sem o stresse de outros locais e idêntico vencimento. É o trabalho do lá vem um…avião. Ser da PSP ou da GNR aqui também deve ser uma profissão pacata sem se terem de preocupar com a caça à multa, assaltos, roubos e demais crimes. Não avistamos um só agente nestes dias, e estivemos sentados mais de meia hora num café na praça em frente ao quartel. Houve só a aparição daquele Polícia Marítimo a chamar-me a atenção por estar parado à porta da Farmácia em contramão. Mas o que gostava era mesmo ser controlador de voo.

Se não fosse a bandeira azul com estrelas que se vê no aeroporto e o uso do Euro como moeda ninguém pensaria que estamos na Europa e não é pelos dois mil quilómetros que nos separam da terra firme, mas pela diferença de paradigmas de vida, pelo seu ritmo cadenciado, pelas suas ondas e marés e não pelos ditames da burocracia. A identidade insular é bem distinta da portuguesa e da europeia e para se cumprir falta apenas a vivência de uma autonomia plena que cortasse as amarras ao velho continente. Pertence o arquipélago à Europa por mera e fortuita coincidência geopolítica, mas a alma destas ilhas está equidistante de Américas e Europa. Ainda vou acabar por me naturalizar açoriano!

Por outro lado, os jovens terão de emigrar para terem futuro, como era o caso do jovem especializado em Agronomia com mestrado completo, que nos atendeu no aluguer de carros, e nos disse da sua paixão pela Austrália (e que incentivei, pois lá terá muitos mais hipóteses do que cá). Mais um caso de subemprego ou desemprego camuflado dos jovens deste país. Quem sabe se um dia não estarei a traduzir o seu processo de emigração? Como atrás disse, se não forem criadas condições de fixação de jovens a única saída que lhes resta é a emigração…. Foi ele que nos disse que as rachas na estrada da Fajãzinha não se deviam a qualquer sismo, mas ao mero aluimento de terras, uma constante que ameaça lançar a freguesia no mar. Depois das inundações e derrocadas de fevereiro de 2012, todas as estradas foram reconstruídas, mas estão todas a ceder. O mesmo acontece no Lajedo, pelo que a longo prazo estão ambas condenadas a desaparecer levadas pelo mar. Agora entendo o que na altura me deixou surpreso, que era ver algumas casas com o telhado inclinado em relação ao nível da rua. Pensei que fosse defeito de fabrico, mas afinal era um mero aluimento progressivo (e constante) dos solos. Aliás, embora a Igreja e várias casas tivessem sido recuperadas depois das inundações (que deixaram a Fajãzinha isolada vários dias e obrigaram à evacuação de larga parte da sua população) havia ainda muitas casas que apresentavam rachas e fissuras provenientes do lento deslizamento dos solos. As brechas nas estradas, algumas bem largas, prenunciam mais sofrimento e dor para as gentes da Fajãzinha, e a acreditar no jovem agrónomo, idêntico fenómeno ocorre no Lajedo, o tal local de difícil acesso onde tivemos a emocionante aventura de descer a estrada em terra, em obras, cheia de montes de bagacina, sem margem para erro de condução a menos que quiséssemos deslizar encosta abaixo. No último dia houve várias estradas que deixamos de percorrer pois a margem de tolerância para tanto abismo era já reduzida, algumas dessas estradas eram demasiado estreitas e nada as separava das falésias, nem a mera ilusão de um renque de hortênsias a fingir de proteção das falésias alcantiladas, a pique sobre o mar, centenas de metros abaixo…, e, francamente, gosto de descer mais suavemente até às fajãs. Outras que fizemos, como a subida do Farol de Albernaz para o Morro da Burra, guiamos bem mais afastados do precipício, mais encostados ao morro, praticamente na contramão, dado ser muito assustador ir pelo lado direito da estrada ou da berma sobre as falésias. Cá em baixo havia o ilhéu de Maria Vaz, a Quebrada Nova e a Ponta dos Fanais. Tudo a pique num bosque sem árvores, apenas um declive em linha reta e direta para as pequenas ondas. Houve outras estradas semelhantes e a noção que perdura é a de que a Ilha das Flores é feita de montes muito altos e de muitas pequenas fajãs lá em baixo e todos sabemos como nascem as fajãs…. Sobem-se 300 metros em poucos quilómetros de estradas íngremes.

Não há muitas casas isoladas, agrupam-se em aldeamentos não havendo tanta dispersão como noutras ilhas. Talvez pela inclemência dos elementos tivessem necessidade de permanecer agrupados.

Outra nota curiosa desta estadia foi constatar a falta generalizada de crianças e de jovens por todos os locais por onde passamos, pois, a maioria das pessoas que se viam eram já de uma certa idade. Começa também a ser visível nas ilhas o envelhecimento populacional. Ainda hoje o secretário da educação, Luiz Fagundes Duarte referia haver menos 853 alunos este ano, tendência redutora que se vem verificando nesta última década. Começam a desaparecer as famílias numerosas de seis a dez filhos que ainda eram normais na geração anterior.... Menos alunos significa menos professores, menos escolas, menos serviços, menor economia, menos contribuições fiscais e menos riqueza na região. O envelhecimento geracional em paralelo com outros fatores pode conduzir à extinção das espécies, neste caso à extinção do povo açorianos que nem atinge 250 mil pessoas nas ilhas embora com seus descendentes sejam uns milhões expatriados. No entanto, é um facto comprovado que em alturas de crise os nascimentos disparam, pelo que resta esperar que esta enorme crise traga um acréscimo de natalidade.

Depois da leitura não perca as fotos das Flores e Corvo https://www.youtube.com/watch?v=FrF_9UrceZc https://www.lusofonias.net/a%C3%A7ores/flores/1874-00-diaporama-flores-e-corvo-chrys-2013.html



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