Ana Soares
O aborto, mais uma vez
Serão amanhã votadas, mais uma vez, proposta de alteração à lei do aborto na Assembleia da República. Desculpem a utilização da palavra aborto, da qual parece que todos fogem, mas interrupção implica a possibilidade de retoma e, não sendo possível numa gravidez que não segue o seu curso, não sou a favor da utilização do eufemismo “interrupção voluntária da gravidez”. Chamemos os “bois pelos nomes” e assumamos, desde logo, do que estamos a falar.
Em primeiro lugar, importa recordar que o aborto é permitido, em Portugal, até às 10 semanas (10 semanas + 6 dias) de gravidez, por opção da mulher, com isenção de taxas moderadoras e sem qualquer penalização. Pelo contrário. Relembremos também que o aborto compreende um processo, com várias fases, em que num primeiro momento é feita uma consulta médica em que o procedimento é explicado, é realizada a datação da gravidez, oferecido apoio psicológico e em que existe um período de reflexão obrigatório de três dias; um segundo momento em que é realizado o aborto propriamente dito e uma terceira fase em que, após 15 dias aproximadamente do aborto, é realizada uma ecografia e analisar o estado da situação. Em todo o processo, médicos e demais profissionais de saúde, têm direito à objecção de consciência.
Existem depois situações excepcionais - graves e às quais ninguém fica indiferente - perfeitamente enquadradas na lei, e igualmente despenalizadas, como quando existem motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita (situação em que o aborto pode ser realizado até as 24 semanas) ou quando a gravidez é originada por uma violação (em que o aborto pode ser realizado até as 16 semanas), sendo que em situações de fetos inviáveis, o aborto pode ser praticado a todo o tempo.
A lei portuguesa é uma lei equilibrada, que não é fundamentalista nem contra nem a favor, ainda que eu pessoalmente tenha muitas reticências à utilização do aborto mais do que uma/duas vezes, por opção. As alterações que estarão amanhã a votos na Assembleia da República, propostas pelo PS, CDU, BE e LIVRE, ainda que cada uma com as suas particularidades, pretendem alargar o prazo do aborto para 12/14 semanas e terminar com o período de reflexão.
O que está agora em causa não é a possibilidade de existência de aborto. Esse já está previsto na legislação. O que agora está em causa, é alargar o período em que o mesmo pode ser feito por opção da mulher e acabar com mecanismos legais que foram criados para proteção das mulheres: para estarem devidamente informadas de alternativas e de como o aborto é realizado; para estarem mais impermeáveis a pressão de realização do aborto pelos companheiros, familiares ou patrões e para saberem exactamente a que apoios podem lançar mão caso pretendam prosseguir com a gravidez. Porque querem eliminar mecanismos de apoio, informação e esclarecimento à mulher grávida?!
O aborto não é um direito (até porque o Direito dos Direitos é o direito à própria vida) nem nada está relacionado com o direito de cada mulher mandar no seu corpo, até porque nunca esteve em causa a liberdade de decisão e autonomia feminina quanto ao que é seu (era o que faltava!), mas sim quanto a um terceiro que cresce temporariamente no corpo da mulher.
Tratemos de melhorar os procedimentos de adopção; criemos novos meios de apoio às famílias e aos nascituros; façamos da sociedade mais humanista, com mais preocupação pelo próximo e não fomentemos, como regra geral, a opção mais fácil e que tem consequências para todos. Ninguém deseja famílias sofredoras e infelizes e muito menos crianças indesejadas. Portanto, arranjemos solução para aquilo que efectivamente tem que ser melhorado e cuidado na nossa sociedade: o bem-estar e felicidade de cada ser-humano, com respeito a todos os outros, de qualquer idade.
Acredito que a grande maioria das mulheres que aborta o faz com o coração despedaçado. Sei, porque fiz voluntariado na área, que muitas procuram apoio, uma alternativa, uma solução, e estas devem encontrá-las no Estado. Sejamos honestos a nível intelectual e percebamos também as jogadas políticas que estão em cima da mesa, pois não é de todo coincidência que o PS avance agora com esta questão, quando não o fez tendo maioria na AR. O problema é que a vida, o mais precioso dos primados, não é compatível com manchetes de jornais lançadas de ânimo leve ou com interesses partidários. Ou não o devia ser. Até porque, quem anteriormente disse que os pormenores da despenalização do aborto (e bem!) era uma questão de princípios, estruturante, fraturante na sociedade portuguesa e que, por conseguinte, os portugueses tinham de ser ouvidos em referendo, não pode agora esquecer as suas próprias convicções e apropriar-se do voto a que cada um de nós tem direito. Porque a democracia, tal como a Vida, não é apenas um princípio quando dá jeito.