Ana Soares

Ana Soares

O Alergias

Esta crónica é diferente. É um grito desesperado por um Estado Social que o seja de facto e não só de nome. É o expressar de revolta que qualquer pessoa deve sentir por Famílias que passam por um desespero diário, não por qualquer opção errada que tomaram, mas tão só por uma questão de saúde. Podia aqui falar da exasperação de Famílias cujos idosos têm exigências medicamentares muito superiores aos seus rendimentos ou do seu agregado. Podia falar de Famílias com elementos com deficiências que não os conseguem colocar numa Instituição condigna por falta de dinheiro. Todos estes casos são reais, múltiplos e revoltantes. Mas hoje quero escrever sobre crianças (e adultos, que também os há) cuja vida tem que ser programa ao milímetro por possuírem alergias severas e cujo acompanhamento exige que os que lhe são mais próximos mudem radicalmente de vida.

 

Aqui há tempos, chamou-me a atenção uma reportagem televisiva sobre uma Família de quatro Pessoas, cujo Filho mais novo possuía alergias severas. Não os conheço e apenas troquei com eles duas mensagens, a pedir autorização para escrever esta crónica. Convido todos a verem os cerca de 20 minutos de entrevista a esta Família porque o amor não se traduz por palavras nem haverá certamente um discurso mais incisivo do que o dos próprios Pais cuidadores (https://www.youtube.com/watch?v=7clc9RCYnn8 ). Acredito que todos quantos virem esta entrevista não poderão ficar indiferentes.

 O Salvador, assim se chama o Menino, é uma criança linda e enérgica como deve ser qualquer criança da sua idade. Tem uma Irmã também maravilhosa, ainda criança, de nome Maria. O Salvador possui alergias graves e que exigiram que toda a Família, movidos pelo amor, tivessem que mudar radicalmente as suas rotinas: profissionais, sociais, económicas, familiares, … Muito haveria para dizer, mas que vai para além do espaço desta crónica, por isso convido todos a seguirem a Página de facebook “O Alergias” e a seguirem o seu dia-a-dia.

Uma breve contextualização do nível de exigência quotidiana para o Salvador estar seguro. Para termos uma ideia, o Salvador não pode estar num local onde tenha havido proteína do leite, pois faz reacção alérgica por inalação, ingestão ou contacto. Agora recorde-se que a proteína do leite de vaca está presente em muito mais do que comida, como em determinados brinquedos, por exemplo. Mas esta é apenas uma alergia de muitas outras: frutos de casca rija, citrinos, ovos,… Ou seja, um troque ou um simples beijo pode colocar em causa a vida deste Menino. O tocar num brinquedo que outra criança tivesse na mão, depois de comer um iogurte ou uma bolacha, é suficiente para um choque anafiláctico gravíssimo. E não é necessário dizer nada mais.

Estes Pais, como outros anónimos, debatem-se – sem vitimizações e com um discurso surpreendentemente positivo – com dificuldades, não só práticas de tentar que o seu Filho não corra riscos de vida desnecessários a par de uma vida o mais normal possível, como também económicas pela carga que implica conseguir fazer face à sua exigência alimentar, por exemplo. Neste caso em particular, um pacote de massa que o Menino pode comer custa 3 ou € 4,00. O mesmo 100 gramas de pão. Uma lata de leite, para três dias, cerca de € 40,00.

Sendo um casal de classe média, vêem ser-lhes negados apoios essenciais. Que Estado Social é este que não consegue adaptar-se e analisar cada caso como um caso? As ajudas que este casal recebe são de empresas e pessoas que se associaram ao projecto “O Alergias”. Nada Estatal. Nada de quem tem como missão defender e fazer cumprir os Direitos Fundamentais.

É mais que doloroso imaginar as questões com que estas Famílias se debatem, sobretudo quando têm mais que uma criança. Estamos a falar de uma criança, tal como todas as outras, mas com a qual é necessário ter um cuidado permanente. Ao segundo. Em qualquer lugar. Em qualquer circunstância.

A felicidade que transparece no olhar destes dois Irmãos é fantástica. O amor que une esta Família e que se respira a cada segundo da sua entrevista é exemplar e um balde de àgua fria para tantos de nós que nos queixamos quando não temos razão para isso. Se o amor é o combustível da vida, eles são o exemplo disso, mas qualquer vida precisa de dinheiro para comer, para fazer face ao dia-a-dia, para viver e não apenas sobreviver. Porque não podemos esquecer também estes Pais, cuidadores, que abandonaram o que seria normal nas suas idades, no seu meio social para que não falte todo o apoio a estas crianças. É urgente que o novo enquadramento legal do cuidador vá muito para além da letra lei, ainda que seja um bom começo. É urgente olhar para os que são cuidados e cuidar dos cuidadores. Os Pais, por amor, fazem tudo, mas nem o amor é de ferro.

Como sociedade, não podemos permitir que esta Família – como qualquer outra nestas circunstâncias – se tenha de debater entre comprar uma caixa de cereais para a Filha mais velha ou uma lata de leite adaptado para o mais novo, como esta Mãe relatou. Dói demais pensar nisso como Mãe que sou. É impensável aceitar esta situação como Cidadã que sou. É intolerável ficarmos calados como sociedade que somos. 

Cada um de nós pouco pode fazer. Mas o pouco multiplicado é muito, e todos juntos podemos fazer mudar esta injustiça cabal! Pelo Salvador, por todos quantos estão na mesma situação, pela nossa dignidade enquanto sociedade e de cada um de nós, com as suas particularidades, enquanto Ser-Humano!


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