Henrique Ferreira
O caso das touradas e o respeito pelos animais
Vivemos numa cultura em que nos julgamos donos dos animais porque julgamos também ser-lhes superiores racionalmente e estarem eles ao nosso serviço. Não me choca que pensemos assim desde que acrescentemos três elementos que tanto S. Boaventura como S. Francisco de Assis recomendaram: o respeito, a piedade e a dignidade.
Pelo respeito consideramos que o animal é um ser vivo, dotado de pensamento, sentimentos e afectos, que deve ser tratado com o maior carinho possível e alimentado adequadamente.
Pela piedade consideramos que, quando temos que infligir algum dano ao animal, temos de o fazer de forma a proporcionar-lhe o menor sofrimento possível.
Pela dignidade consideramos que o animal é sujeito de direitos que tem de ser guardado e tratado da melhor forma possível.
Se a Lei já elevou os animais de coisas a seres titulares de direitos embora sujeitos ao ser humano, então não é legítimo infligir-lhes dor e sofrimento, a não ser na medida do condicionamento educativo mínimo necessário.
O Dr. Manuel Alegre e o Primeiro-Ministro, Dr. António Costa, trocaram cartas sobre as touradas.
A carta de Manuel Alegre a António Costa é uma aberração porque Alegre defende a tourada portuguesa como opção de liberdade cultural. Entende que a luta entre homens e touros, nas arenas, deve ser precedida de um enorme sofrimento dos animais através do espetamento de farpas e do cansaço, para que eles percam grande parte da sua força para o confronto com os forcados. E, depois, sejam abandonados à agonia num sofrimento atroz de dias até ao açougue.
António Costa, na carta de resposta, diz a Manuel Alegre que não concorda com tal tourada, por desumana, mas que, se não for ele, Primeiro-Ministro, a autorizar tal tourada, que está bem e, que, por isso, vai entregar a decisão às autarquias, qual Pilatos que se demite de promover o humanismo civilizacional.
No fundo, dizem ambos a mesma coisa, só que um é uma raposa política e o outro faz de bruta-montes jacobino.
Ao longo dos tempos, a barbárie exprimiu-se e exprime-se de diferentes modos embora cada vez menos sanguinolentos: 1) no paleolítico e mesolítico, ofereciam-se pessoas em sacrifício aos deuses; 2) na época romana, os cristãos eram obrigados a lutar entre si e a derramar o seu sangue, na arena, para gáudio dos romanos; 3) seguiram-se os autos de fé medievais e da Inquisição como forma de castigar os pecadores e proteger os déspotas e sanguinários; 4) seguiram-se as touradas, onde as pessoas já são substituídas por animais, ainda com derramamento de sangue; 5) depois, vieram os desportos sem sangue mais violentos mas já com regras a proteger a vida e a integridade física , regras que, muitas vezes, não são cumpridas; estando neste grupo o box, o râguebi, o beisebol, o futebol, o judo e as lutas livres; 6) impedidos de promover lutas de morte entre homens, alguns destes promovem lutas de morte entre câes, galos, corridas de cães e de cavalos até ao desfalecimento. Foi neste contexto de barbárie que abandonar cães, gatos e outros animais ou fazê-los passar frio, fome e intempéries se tornou prática pouco penalizada.
A nossa sociedade é uma sociedade de barbárie e as medidas para a civilizar são poucas e incongruentes.
Ninguém acredite na mudança dos comportametos só por via da educação. Ela é absolutamente necessária mas, se não for acompanhada do exercício da autoridade e da punição, não resulta
Pelo que fica dito, sou contra as touradas que inflijam sofrimento físico aos animais. Porém, se aceitarem fazer touradas, sem facas, sem farpas e sem espadas e ainda sem mortes na arena, acho que a tourada é razoável. Basta cansar o animal até ao confronto com os forcados. Parece-me uma boa conciliação entre a hipocrisia de Costa e a barbárie de Manuel Alegre. No final, todos podem ir descansar. E os dois, beber um copo de S. Martinho.