Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Circo

O circo está montado. No palco, as feras, meio tresloucadas, sedentas e rasas em empatia, rodeiam o palhaço, nada altruísta e enormemente egoísta, na sala feita lago de água fétida. Nela, este Narciso que nos cabe mira-se com a ilusão de que é o mais belo e mais espertalhão entre todos, neste tempo insano que quer desenhar para que tudo seja em seu proveito.

Diariamente, na cena do circo, o palhaço lança para o ar, com trejeitos teatrais, balões estrondosos e coloridos, anunciando novas ocasiões e medidas nunca vistas, muito cheio de si mesmo, dizendo-se ungido por Deus para salvação da humanidade que, na sua visão toldada, se circunscreve aos seus compatriotas e, mesmo assim, não todos.

O público, o seu, aplaude com reverência, em boa parte fingida e, em grande parte, pelo menos ainda, cristalizada nas ondas do pensamento sem raiz, fixado no lodo da ignorância e da intolerância, utlizadas para fins remediadores de todos os males sentidos e medrados na inquietude.

O circo reluz com as suas luzes coloridas. No palco, os artistas trapezistas fazem piruetas e voos para eles muito seguros. Por sua vez, o apresentador, com todos o focos centrados em si, aparenta fazer magia a cada jeito de mão, em desenho de assinatura, exibindo e mostrando para que fique registado e provado que, fazendo rir, não brinca e se afinca no levar a cabo a sua missão.

Cá fora, no mundo que se encurtou, porque todos somos vizinhos, as guerras feitas à distância e sem cavalheiros, iniciadas antes da montagem do circo, continuam, como lhes é próprio, destruindo e espalhando a morte com cenas de terror, condenadas ou desculpadas conforme o lado de quem sejam, pois, nesta modernidade, o choro de uma criança não é igual em todos os inocentes.

Bem sabemos que o mundo sempre foi fértil em circos, assim como também sabemos que, em cada mudança de paradigma estrutural e civilizacional, sempre se montaram espetáculos torpes e degradantes. Em cada uma delas sempre se temeu pelas mudanças. Mas, sabido é também que depois sempre surgiu um mundo melhor e mais justo, no conjunto de países onde elas aconteceram e se fizeram sentir.

Neste circo, que parece uma procissão que ainda vai no adro, por tantos serem os que pululam em redor do protagonista, o show com inauditos contornos vai continuar e vai espalhar-se. Os ecos dos aplausos espalham-se e irão começar a ter efeito, pois as estrutura das paredes são de lona e as suas consequências serão de retorno grande e garantido para quem pode e manda.

O dono do circo age como se tudo fosse dele, como se os terrenos que ocupa não sejam da nação, que lhos entregou com mandato, mas não em regime de comodato, e não quer permitir que outros, noutros lados, sigam algo que ele não queira, não mande ou não diga. Nada tarda. Como Napoleão, irá ele próprio coroar-se imperador do império que imagina, mas não conhece, para fazer surgir prometidos dias grandiosos sem os empecilhos da democracia, algo que, no seu modo de ver, só estorva.

Neste mundo, em que a vida decorre, como sempre, num palco em que se desenrola uma peça protagonizada por loucos, tudo indica, e isso é bom, que a guerra mais louca poderá findar em breve. Há muito a reconstruir, e o negócio apetecível urge, pois os investidores estão ansiosos. Os despojos, feitos de materiais valiosos, estão garantidos para os que vão à frente, que decidem sem olhar à causa das coisas.

Foi sempre assim. O circo vai arder e o tempo vai andar para trás. Poderemos voltar à época pré-renascentista, onde a razão contará, outra vez, menos que a perceção, e onde a verdade se diluirá na conveniente mentira. O ciclo repete-se no devir da História por falta de memória.

No entanto, desta vez, algo pode vir a ser diferente, pois nada nos diz que, quando despontar a nova aurora vislumbrada, os novos artistas serão de se confiar. Não sabemos se virão da mais fina flor ou serão palhaços disfarçados que nos levam, pela arreata, pelos caminhos que vão dar ao lago da alienação.

Resta-nos, esperançosamente, pensar que os valores que nos diferenciam são essenciais e eternos, desde que abandonamos as cavernas e nos tornamos mais decentes. Veremos.

Por agora, homens e mulheres, rapazes e raparigas, tomem os vossos lugares. O espetáculo vai continuar.



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