Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

O consenso nacional necessário

Há períodos assim na vida de qualquer cidadão normal. A vontade de intervenção na coisa pública esboroa-se na sucessão de desilusões da vida social, no pessimismo resultante da aparente inutilidade da educação cívica e da participação, face aos escândalos diários tão frequentes entre as classes dirigentes que já se tornam um procedimento normal de certas elites.

Depois, o excesso de estímulos para a intervenção escrita, o excesso de informação e de expressão de opinião imediata sobre os factos, que desactualiza a própria informação, imediatamente substituída por novos factos, sem permitir a hierarquização da sua relevância social e política; a anarquia do processo interventivo, que coloca ao mesmo nível a opinião fundada e o comentário soez e irresponsável, a falta de ponderação do que é efémero e do que é duradouro, do que é evento pontual e do que é tendência de fundo, do que são os tiques de grupos e do que é o interesse geral, do que é ideologia e do que é pretexto para promover interesses ilegítimos; este acumular de discursos e réplicas, esta redução mesquinha duma nação aos caprichos duma elite ambiciosa, aguerrida e sem escrúpulos; esta banalização da imoralidade, do desprezo de valores humanos, da pouca-vergonha dos negócios, da falácia dos argumentos, da meia-verdade ou da mentira descarada, da promoção dos amigos e da proteção dos cúmplices; tudo isto semeia a desorientação entre aqueles que se dedicam regularmente à análise da vida social e política numa preocupação de olhar para o futuro desprezando as tricas do dia-a-dia.

Esta tem sido sempre a minha preocupação e a estratégia da minhas pobres crónicas, nas quais tenho procurado colocar-me acima da guerrilha diária, da má-língua de café e da conversa formatada pela novela dos telejornais. Por isso que, nos últimos tempos, a escrita se me tornou emperrada, hesitante, enrodilhada num labirinto de pensamentos que clamam outras análises, outras ramificações, e que não se conformam com o espaço reduzido de uma crónica.

Apesar disso, é inevitável retomar alguma rotina de escrita, forma de intervenção que tenho privilegiado, e, para o fazer, tentar isolar entre a maré alta de informação algum sinal que aponte uma perspectiva do futuro político próximo do nosso país.

Não há sinais de mudanças de fundo. Apesar de o governo estar esgotado na sua acção, cumprida parte da sua estratégia de liberalização e incapaz de enquadrar a pretendida redução do Estado Social no quadro a que está juridicamente vinculado – o da Constituição da República - e de o descontentamento e até a indignação terem atingido uma boa parte da população, não se divisam sinais de uma mudança de rumo. Bem podem os dirigentes do Partido Socialista afirmar-se os arautos dessa mudança; bem podem as lutas internas pela liderança e pelo protagonismo neste partido inculcar a ideia de que há uma tendência mais à esquerda e outra mais à direita, uma linha mais identificada com as bases e outra mais próxima dos interesses do baronato, uma opção mais audaz e capaz de rupturas e outra mais inclinada aos consensos de regime; bem pode a esquerda mais inconformada reclamar a demissão do governo ou a exautoração deste ou daquele governante. Este governo, gasto, desacreditado internamente, incompetente, impopular, irá, apesar disso, até às eleições regulares.

Mas, depois delas, a contradança repetir-se-á, com mudança de rostos e de discursos, com a acomodação dos vencidos nos lugares cimeiros da administração pública e das empresas que manipulam as instituições e com a entronização dos vencedores nos postos cobiçados da governação. Entre as elites do governo e da oposição dita de vocação governamental não há uma verdadeira diferença de interesses. Poderia dizer-se que há uma diferença de ideologia; mas quem acredita hoje que a ideologia determina alguma coisa no rumo dos governos? Simples flor na lapela nos escassos dias de uma campanha eleitoral, a ideologia deixou de ser uma linha orientadora da acção política, um quadro de referência da condução das sociedades, uma visão intelectual da construção da Polis, para passar a mero argumento de arremesso ao adversário político, emblema agregador de cumplicidades e ténue cobertura dos compromissos que partilham entre si a gamela orçamental.

É neste contexto que incluo a actual disputa interna no Partido Socialista e a promoção velada de algumas personalidades nos partidos do governo. As vicissitudes por que passou a governação nos últimos três anos, as frágeis e desajeitadas intervenções de um Presidente da República incapaz, as conflituosas relações entre governo e oposição e a desadequação desta geração de políticos a um quadro de valores nacionais de longo prazo têm levado alguns cidadãos mais autorizados, mais experientes e com assinalável bagagem intelectual e cívica, a manifestarem a necessidade de um consenso nacional alargado que possibilite o diálogo construtivo dos dois maiores partidos sobre os grandes desígnios nacionais. A emergência de António Costa como eventual líder do Partido Socialista e a eventualidade de renovação da estrutura dirigente do partido do governo em torno de uma personalidade descomprometida ou até crítica da acção deste governo, como, por exemplo, Rui Rio, poderia facilitar esse consenso. Mas é preciso saber de que consenso falamos e aonde nos conduzirá tal consenso.

Os factos recentes mostram-nos que os cidadãos não podem confiar nos governos, nem nas autoridades reguladoras nem nos dirigentes das empresas. Qualquer buraco num banco privado mobiliza um volume de recursos nacionais muito superior ao que exige a manutenção de um serviço nacional de saúde, de um sistema de educação mais justo ou de uma organização judiciária mais eficaz. Por isso, os consensos necessários à restauração da dignidade do País não passam pela arbitragem dos interesses de grupos, pela protecção dos poderosos e muito menos pelo favorecimento de clientelas nepóticas.

Pelo contrário, uma linha de rumo de verdadeira restauração nacional tem de ter dois objetivos fundamentais, que são realizáveis pela simples vontade política dos portugueses, que não interferem com as nossas obrigações europeias ou internacionais e que não nos afastam, antes nos aproximam, dos países mais avançados e mais influentes da Europa: a seriedade dos processos políticos, com um combate sério e impiedoso contra a corrupção e os conluios de interesses, e a fixação de objectivos quantificados e escalonados no tempo para uma redução progressiva mas segura das desigualdades.

Independentemente das simpatias políticas dos portugueses, penso que estes dois objectivos são transversais na sociedade portuguesa e que não haverá governação digna desse nome se os mesmos não forem tomados a sério.

Ps: por opção pessoal, não sigo o Acordo Ortográfico de 1990.


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