Fernando Campos Gouveia
O direito (dever) de mudar de rumo
Os dois últimos meses da vida política em Portugal foram agitados, o que não é de estranhar, dadas as contradições existentes entre as evidentes ou presumidas motivações do eleitorado e a tradução dessas motivações na prática política. De facto, a prática política é um exercício que se legitima nos votos, mas que é condicionado por muitos outros fatores, muitos adaptáveis ao longo do mandato político, outros a mais longo prazo e com outra extensão, que só escolhas estratégicas claras e duradouras permitem dominar.
Em 4 de outubro último, independentemente do que se possa especular sobre o sentido dos votos, a linguagem dos números indicou claramente uma fratura na sociedade portuguesa entre uma maioria que sentiu com especial violência as consequências da última governação e uma minoria muito representativa, muito ativa na manifestação pública das suas opiniões, inclinada a seguir um discurso que é o do poder cessante.
As atribulações para a formação de um governo com apoio parlamentar suficiente foram finalmente ultrapassadas, mas este período de dois meses deixou certamente sequelas mais difíceis de ultrapassar. As relações entre as formações políticas que, ao longo de quarenta anos, partilharam o poder estão degradadas, tendo faltado na circunstância recente vozes autorizadas que desdramatizassem os ardores do discurso partidário e reconduzissem ao verdadeiro sentido político a mudança inevitável que acabou por se impor. A sucessão dos governos em democracia não pode ser um drama e as alternativas políticas devem sempre estar em cima da mesa das possibilidades.
Por muito que se queira compreender a função presidencial neste contexto, há uma clara constatação, expressa quer por responsáveis políticos, quer por comentadores, quer por uma opinião pública difusa, de que o Presidente da República falhou na sua missão de instituição moderadora e na transmissão de uma imagem de imparcialidade. Tendo alinhado as suas posições públicas com as da coligação que perdeu a maioria, tendo brandido as acusações que a população está habituada a ouvir dos partidos liberais e de instituições que se pautam pelo liberalismo, como a troika, os bancos, alguns grupos de pressão, etc., tendo deixado clara a sua opção pelas “pessoas que compreendem a situação económica”, ou seja, “pelos votos que contam”, em manifesto desprezo por uma nova realidade resultante das urnas e cuja dignidade e legitimidade lhe competia proteger, tendo até extremado o seu discurso ao ponto de desconsiderar partidos com larga tradição parlamentar e democrática, o presidente fez talvez a prova mais cabal da sua incapacidade para o cargo que lhe foi dado desempenhar nos dois mandatos que agora terminam numa “apagada e vil tristeza”.
Cavaco Silva é definitivamente um presidente para esquecer, a assinalar um dos períodos mais inúteis da instituição que representa. Esta é uma das sequelas que não será fácil ultrapassar. Por um lado, porque vai certamente servir de padrão negativo na próxima campanha presidencial, em relação ao qual os candidatos deverão normalmente distanciar‑se; por outro, porque, depois de designar o atual governo a contragosto, se levantam justíssimas questões de ordem constitucional sobre os poderes do presidente e o modo de os exercer, e sobre o equilíbrio entre esses poderes e os de outros órgãos de soberania, ou seja, o presidente trouxe para a primeira linha das preocupações políticas o equilíbrio dos poderes do Estado, questão que os três presidentes que o antecederam resolveram de modo satisfatório.
Outra das sequelas que necessitam de uma solução consensual é a que resulta da aparente incapacidade dos partidos de gerirem o (novo) paradigma político que resultou das eleições. Os partidos do poder tradicional sofreram uma notável erosão e a emergência de uma esquerda renovada e depositária das esperanças dos mais frágeis da nossa sociedade obriga a que as estratégias partidárias integrem uma nova dimensão negocial. A partir de agora, não pode haver muros intransponíveis entre forças partidárias, pois a fragmentação política, a exemplo do que vai acontecendo noutros países, exige que caiam alguns tabús e que os cidadãos, todos eles, se sintam representados no exercício do poder.
O discurso predominante na política, até agora dominado pelos tenores da economia, deve também ser mais abrangente, até pela necessidade de concitar o contributo de todos os cidadãos para os grandes problemas que se colocam. Os novos desafios que a Humanidade tem de enfrentar não se compadecem com uma organização política do poder em que apenas uns poucos têm tido realmente voz, e isto quer se trate de entender e vencer o terrorismo quer se trate de dar remédio aos enormes problemas ambientais, quer se trate de reforçar a coesão social e outras dimensões civilizacionais em que assenta a dignidade humana. Mudar de rumo é um direito dos cidadãos, mas é também um indeclinável dever dos políticos.