Chrys Chrystello
O homem do castelo da Lomba da Maia
crónica 284 O homem do castelo da Lomba da Maia
JC era um homem que ficava em casa, incapaz ou sem vontade de querer interferir nos assuntos da “civitas”. Não aceitava como sua a responsabilidade de lutar sozinho contra déspotas, tiranos, corruptos, medíocres, ao contrário do que fizeram durante várias décadas. Um autor açoriano, de seu nome Daniel de Sá, já o havia intuído:
Existe um "castelo" na Lomba da Maia. Não tem torres nem ameias nem tampouco o fosso protetor contra invasores e atacantes. Também não tem nome nem dono. Foi assim batizado por aquele escritor, por lá se avistar (dia e noite) um castelão, agarrado ininterruptamente ao seu computador, organizando os Colóquios da Lusofonia.
De facto, dali do topo da sua “falsa” (o nome micaelense para o sótão) a janela de JC abria-se sobre todo o mundo: podia observar os mares e os montes, as vacas, os nevoeiros que se aproximavam e, por vezes, desapareciam sem deixar rasto. Outras vezes era a chuva inclemente e impiedosa que vinha ora do norte, ora do oeste ou do sul, e aí sim, ela abatia-se sobre o seu “castelo” e as grossas gotas corriam pela sua janela e toldavam-lhe o juízo, arrefecendo a sua paciência oriental.
Mas não foram essas chuvas quem apagara o fogo da paixão, extinto há muito pela sublimação do hábito que torna os quotidianos em tarefas cada vez mais pesadas, quando o desespero se apossou subitamente, sem premeditação. Martelando ferozmente o teclado em frente ao qual gastara a última grosa (doze dúzias de anos, assim lhe pareciam) da sua vida, deixava que a vida lá fora corresse sem pressas. Devagarosamente debitava palavras que a gaveta iria consumir com a humidade que, aliás, era muita naquela ilha sempre verde. Sempre a gaveta para onde desde miúdo atirava tudo o que produzia na esperança de um dia lhe vir a ser útil. Já aprendera isso com seu pai e repetia-o até à exaustão pois a mesma experiência ditava-lhe secretamente esse conhecimento de que seriam sempre úteis. Já o tinham sido por várias vezes.
Sabia ser difícil aos que o rodeavam compreenderem aquele frenesim, aquela angústia de escrever e por muito que lhes explicasse (o que já deixara de fazer havia tempo) recusavam-se a ver a sua lógica irrepreensível. Sabia que tinha uma missão diferente de todas as outras e teria de a levar a cabo, embora sem saber rotas nem itinerários. Era quase um eremita rodeado de gente pouca, por todos os lados, como convém a quem é uma ilha, incapaz de se deixar contagiar pelos clamores externos. Não havia ambiguidades na sua postura, optara por ser aquilo que atualmente era. Não tinha ressentimentos nem ilusões. Já passara o tempo da dor, limitava-se a sorrir pouco e rir qb. A vida passada só fazia sentido para o ego que fora, mas já não era. Não poderia repeti-la agora. Tê-la-ia sempre repetido se confrontado com idênticas circunstâncias. O presente devia ser aproveitado sem os hedonismos do passado, com a frugalidade que o seu padrão de vida lhe permitia, sempre otimista quanto aos melhores dias que podem sempre vir, quando menos se espera, sem nunca desesperar.
Tal como George Steiner em “Os livros que não escrevi” não se definia politicamente, nunca declarava abertamente as suas ideias políticas, nem a sua verdadeira posição. Afirmava sempre que nunca pertencera a nenhum partido ou clube, e dessa forma renegava qualquer afiliação que pudesse ter existido nos seus anos formativos. Visualizava os espetáculos desportivos sem se deixar levar pelas emoções ou por simpatias, via friamente o que o pequeno ecrã lhe proporcionava e chamava àquilo o seu entretenimento gratuito. Evitava a todo o custo pronunciar banalidades e raramente subscrevia manifestos. Pelo contrário ridicularizava a impreparação dos jornalistas que debitavam decibéis em telejornais vazios de conteúdo, incitava-os a fazerem as perguntas corretas sem medo de perderem os seus empregos. Raramente via uma coluna vertical e proba naqueles escribas sempre de costas vergadas à censura económica dos seus patrões. Raros eram os editoriais ou artigos de opinião que subscrevia, pois poucos eram os que ainda podiam escrever livremente e menos ainda os que os queriam ler. Muitas vezes fazia análises da conjuntura mundial ou nacional usando meramente o senso comum e interrogava-se porque é que o povo à sua volta não podia ver as coisas com a mesma claridade e transparência com que ele as via.
Escolhera esta forma de isolamento, quiçá aprendido da obra de Nietzsche que era bandeira da sua juventude revolucionária, de aprendizagens várias. Afirmava apenas prezar imensamente a incomensurável liberdade de expressão e de discussão que a revolução de abril (1974) trouxera. Tinha esse desprendimento próprio de quem nunca perdoaria ter tido um livro de poesia, quase juvenil e inóspita, cortado pelo lápis azul da censura e reduzido a um terço da sua dimensão. O seu retiro no “castelo” aparentava uma passividade que não lhe era inerente, mas era assim que reagia ao desapontamento da democracia conjugado com uma utópica visão do mundo que herdara dos livros que lera na sua juventude. Temia todos os totalitarismos e fundamentalismos, mas receava ser acusado de elitista. Nauseavam-no os espetáculos que as televisões colocavam no ar, sem intimidades, nem privacidades, como se fosse a transposição de tudo aquilo que os malfadados formulários burocráticos haviam conservado de cada um e os resolvesse expor na praça pública para deleite geral. Uma espécie de Maria Antonieta no cadafalso para todos verem e vilipendiarem. Era similar às ações dos políticos encenadas para todos verem o que eles pretendiam que vissem, como se as decisões sobre o presente e o futuro do país se definissem através dum jogo de sombras chinesas ou de marionetas indonésias.
Teologicamente definia-se como ateu e não agnóstico, mas lamentava-se de ter perdido a fé com que crescera, embora ainda hoje se limitasse a aplicar na prática todos os seus bons ensinamentos. Ironizava ser mais católico do que muitos praticantes do rito romano, e de ter feito mais bem sem olhar a quem, do que muitos daqueles que se continuavam a benzer, e a ir comungar num espetáculo de voyeurismo público que lhe repugnava. Também ele ao decidir ficar em casa, no seu “castelo” era uma espécie de ”voyeur” do mundo que se desenrolava a seus pés, ainda convicto de que os seres humanos podem ser iguais, independentemente do seu género ou sexo, da sua nacionalidade ou cor de pele. Estava, porém, lucidamente consciente, desta utopia, pois haveria sempre os favorecidos pela “sorte”, os ricos (e quem enriquece à custa de trabalho honesto?) e todos aqueles cuja única missão no mundo era contrariar os seus arreigados princípios de probidade e dedicação a causas perdidas. Estava consciente de que a lei, qualquer que ela seja, qualquer que seja o país, está cheia de iniquidades e favorece obviamente os ricos e os corruptos e quem se “lixa é sempre o mexilhão” pois são sempre os pequenos e os incómodos que servem para dar exemplo da luta contra o nepotismo e corrupção. Bastava nascer-se no Congo ex-belga, em Kiribati (no Pacífico Sul) ou na Terra do Fogo para as hipóteses de futuro serem radicalmente distintas daquele que nasceu no palácio de Buckingham, só para dar um exemplo dum “rapaz da sua idade”.
Embora não tivesse nascido com deformações ou deficiências genéticas viria a adquirir uma perigosíssima estirpe viral: a do conhecimento e da insaciável sede pelo mesmo. Aí, congratulava-se por não ter nascido cego, pobre de espírito, drogado ou delinquente. Outra deficiência que adquirira em novo, por influência paterna, tinha a ver com a sôfrega sede do direito inalienável à liberdade de expressão e de pensamento, uma malformação congénita que lhe valera muitos dissabores pessoais e profissionais ao longo da sua vida.
Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713 [Australian Journalists' Association MEAA]
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