Manuel Igreja
O longo sono do Douro
Era uma vez uma princesa, quer dizer, não é propriamente uma princesa assim daquelas de carne e osso, ou daquelas que por serem imaginárias nunca existiram, mas que fisicamente em tudo se assemelham às que comem, vivem e respiram, umas mais esbeltas que outras, mas todas bem arreadas como é de sua condição.
Esta, a princesa de que vos pretendo falar, tem a forma e o conteúdo de uma região, uma terra de rio, de gente e de vinho. Como as de estirpe dada pelo criar dos artistas, e como as de condição real na sociedade, também ela é merecedora de muitos louvor e de muito se presentear com loas e com juras de amor.
O nascimento da sua importância suscetível de poder ser tida e considerada como algo que conta e como coisa digna de louvor e de valor, aconteceu no dia 10 de setembro de 1756, dia em que por legislação do rei, lhe foram delimitados os contornos e escritas as regras para o seu desenvolvimento.
Não foram necessários então, muitos anos para ela se embelezar e para acrescentar riqueza. Tornou-se conhecida e viu os seus dotes extremamente valorizados. Graças ao árduo trabalho de quem dela cuidava, quase num nada, viu o vinho produzido nos seus vinhedos ser apreciado neste mundo de Deus adiante.
Como não podia deixar de ser, uns poucos enriqueceram muito, alguns enriqueceram um pouco, e outros, não enriqueceram nada, apesar de serem aqueles que mais trabalhavam e mais regavam o solo com o suor do rosto. As mãos calejadas que agarravam aos ferros de monte que pareciam canetas enormes, não souberam escrever direito, pois somente fizeram as linhas dos deveres, esquecendo as dos direitos.
Como disse, não faltou riqueza. Nem era sequer precisa muita preocupação ou devido bem fazer acontecer, para que os dias e os anos decorressem tranquilos como rio que corre para o mar em tempo de bonança. Por parte dos que produziam, dos que tinham pedaços de terra para mandar agricultar, bastava que rezassem para que o clima fosse rotineiro e bom para o granjeio, e por parte dos que vendiam, batava esperar pela época própria para comprar com o preço o mais baixo possível.
O Comércio, uma das portes do jogo que se desenvolvia e ainda se desenvolve, depois de ter encontrado portos seguros para colocar o vinho inequivocamente bom e exclusivo, descansou. Sabia que o produto estava vendido por natureza, pois havia quem dele gostasse e não havia quem o produzisse noutras bandas. Durante décadas, não lhe foi imperioso demandar outras paragens nem gerir com muito afinco ou muita visão os pormenores do negócio.
Na outra parte, a Lavoura, foi de igual forma ou pior. Herdados que eram um dezena de hectares, ou nem tanto, de vinha, bastava que o caseiro se encarregasse do pessoal a rogar e das voltas no cuidar das generosas vinhas para tudo render para o gasto e muito mais. No Douro de então, era possível ser-se rico e dar-se ares de latifundiário com negas de terra com média dimensão.
Foram décadas de um quase morrinha no decurso das quais nunca houve um golpe de asa. Nem individual nem coletivamente. Os lençóis da cama de todos aconchegavam os que nela dormiam. Claro que não eram todos, pois os que mourejavam não deitavam o corpo no leito nem tinham o estomago suficientemente forrado para que as noites fossem doces os dias tranquilos.
Uma vez que estes não tinham capacidade de moldar a forma das coisas para além dos jardins das cepas, a região adormeceu. Não se apercebeu que os quotidianos de excelentes passaram a medianos e depois a básicos. O cultivo deixou de dar para os custos e o vender deixou de ser garantido. O mercado encolheu e encolhe e quem bebe escolhe e ausenta-se. Bebe-se menos e melhor, com crescente tendência para nem isso assim ser porque se busca a juventude eterna.
Neste, entretanto, o Douro ir dormindo. Mas, um dia, estremunhou. A princesa ainda esplendorosa, mas desaconchegada acordou. Estranhou, mas ainda se não adaptou aos humores na nova realidade. Estrebucha e não se sabe dar respeito.
Mais parece que a princesa sem príncipe encantado, não se governa nem se deixa governar. Pode ser que um dia…, por agora só nos resta esperar para ver os próximos capítulos da história que vos queria contar.