Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

O mito das aparições

Rezam as crónicas que, sete anos antes da aparição em Fátima, a Virgem apareceu a uma pastorinha no lugar do Picão, Miranda do Douro, onde chegou a nascer um santuário entretanto abandonado pela primazia dada pela Igreja ao fenómeno de Fátima. Contudo o lendário português está repleto de aparições semelhantes, e com tal energia creencial que levou à construção de importantes capelas e igrejas. Apareceu a uma pastorinha entre Misquel e Parambos, em Carrazeda de Ansiães, sentada numa cadeira de pedra pedindo uma capela. Com idêntico pedido apareceu a uma pastorinha muda, que conseguiu falar, no lugar da Ortiga, junto a Fátima; a uma outra em Colares (Sª da Peninha); e também a pastorinhos em Alcobaça (Sª da Luz), em S. Vicente da Beira (Sª da Orada), em Sabrosa (Sª da Saúde), nos Açores (Sª do Pranto e Sª da Glória), em Arcos de Valdevez (Sª da Peneda), em Cercal do Alentejo (Sª da Conceição), em Rebordelo de Vinhais (Sª da Penha), em Mora (Sª das Brotas), em Polima de S. Domingos de Rana (Sª da Conceição), em Óbidos (Sª de Aboboriz), em Arruda dos Vinhos (Sª da Ajuda), em Pereiros de Vinhais (Sª dos Remédios). Mas também a um almocreve desorientado na escuridão em Paredes, Sabrosa (Sª das Candeias); a uma pobre mulher vítima de violência doméstica em Rossas de Bragança (Sª do Pereiro); a uma menina cega que passou a ver em Vouzela (Sª dos Milagres); a uma menina leprosa, curando-a, em Vila Flor (Sª da Assunção), a um moço “pouco atilado” e depois a seu pai pedindo uma capela em S. Martinho de Balugães (Sª Aparecida). Umas vezes sobre um penedo, outras sobre um castanheiro, um loureiro, uma roseira brava, uma pereira, ou montada num burro (em Rebordelo). A todos pede uma capela. Em Mogadouro pediu mais: que mudassem o nome de Sª das Dores para a atual Sª do Caminho.

São aparições mescladas em relatos lendários com um fundo comum, incluindo o da natureza dos “videntes”: geralmente crianças pobres, pastorinhos, de escassa instrução. A circunstância de se tratar de pessoas simples, cultural e socialmente, inibe à partida qualquer presunção de haverem planeado uma ação estratégica. Por isso, quanto mais a lenda acentue a sua humildade mais convincente resulta o seu testemunho. Acresce que, tratando-se de figuras do povo, é grande a probabilidade de a “notícia” fluir rapidamente no seu seio. Entretanto, há um olhar resistente, reprovador, das camadas mais elevadas da sociedade, gerando-se um confronto de classes que faz emergir as condições propícias à implementação da ideia de uma justiça cristã sempre favorável aos mais humildes, tal como a apregoa a Igreja. E ao mesmo tempo reforça-se no imaginário coletivo a dimensão mítica das narrações.

(in JN, 10-4-2017)


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