Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

O mito do Entrudo

As manifestações tradicionais de Carnaval, chamadas de Entrudo, mantêm a sua originalidade no nordeste transmontano, em especial com as figuras dos caretos de Podence, Ousilhão, Baçal, Varge, Vilas Boas e Salsas, que personificam seres sobrenaturais, herdeiros dos deuses diabólicos venerados na Roma antiga.

A fisionomia dos caretos, com suas máscaras demoníacas, impondo um misto de terror e diversão, apresenta evidentes semelhanças com as divindades das festas Lupercais romanas que eram celebradas nesta altura do ano, em honra do deus Pã, também conhecido por “Fauno Luperco”. Esta figura apresentava-se com aspeto diabolizado, cornadura de bode e corpo peludo, perseguindo as pessoas que fugiam aterrorizadas. Note-se que uma das funções dos caretos, em especial os de Podence, é também perseguir e chicotear as pessoas, incutindo-lhes medo, especialmente às raparigas. Ignotos nas suas máscaras de lata, chocalhos à cintura, fatos de franjas de cores garridas feitas de linho e lã, percorrem os cantos da aldeia, entram e saem pelas janelas das casas e alpendres, trepam aos telhados e arrastam para a rua as raparigas indefesas, sujeitando-as ao barulho das chocalhadas e ensaiando com elas rituais eróticos.

Estas e outras tradições transmontanas (os famosos “Julgamentos do Entrudo”) assumem-se assim como herança diluída dos velhos ritos romanos em honra do deus Pã, mas também do deus Saturno, o deus da agricultura. Nas celebrações a esta divindade, conhecidas como “Saturnálias”, era permitido que o poder dos senhores passasse provisoriamente para aqueles que faziam produzir os campos: os escravos. Era um tempo de inversão, prazer e exagero, em que estes passavam a ser livres, nas palavras e nas ações, podendo expor e ridicularizar publicamente os seus senhores.

Entretanto, assistiu-se a uma implícita apropriação do mito por parte do cristianismo. Entrudo procede do latim “introitus”, que significa entrada. Entrada em quê? Na Quaresma. Tal justifica haver uma despedida ruidosa dos excessos e dos prazeres da carne (de onde veio a moderna designação de “Carnaval”), confirmando-se assim o apurado sentido cristão do Entrudo, ainda que o vejamos, como festa popular, inteiramente dominado por rituais pagãos.

in JN, 2-3-2019

 


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