Luis Guerra

Luis Guerra

O mundo interno

«Naquele dia, o viajante estava num Parque de Estudo e Reflexão, junto ao monólito, a olhar para o interior do recinto e vendo ao fundo a oficina, instalada num contentor adaptado. Sabia que estava ali mais gente, mas não via ninguém.

Então, decidiu ir até à oficina. Lá dentro estava uma certa penumbra, um ambiente semicerrado. Do lado esquerdo abriam-se umas escadas para uma cave e ele começou a descer. Era uma cave húmida, fria e escura. Teve de habituar os olhos à escuridão. Depois, acendeu a lanterna do telemóvel e iluminou o espaço à volta…

Do outro lado viu que a cave se prolongava e que existia uma rampa. Começou a descer a rampa inclinada. Não ouvia mais nada senão o som dos seus passos. Estava numa galeria subterrânea como se fosse um desfiladeiro, o caminho em que seguia serpenteava em direção descendente e ele continuou a marchar encostado à parede de rocha à sua direita para chegar ao vale abrupto que se via lá ao fundo.

A dada altura, viu um poste metálico à sua esquerda, parecido com o de um quartel de bombeiros, e, impulsivamente, agarrou-se a ele e deixou-se escorregar. O poste era comprido e o viajante foi passando por diferentes níveis até chegar ao subsolo. Havia rochas de um lado e do outro, era um sítio muito escuro e com o teto baixo, pelo que teve de prosseguir de gatas. Encontrou teias de aranha que atrapalhavam o seu avanço e de vez em quando via um clarão. Ainda assim tentou progredir. O ar estava saturado e ele pôs uma máscara para conseguir respirar. De repente, começou a ficar apertado e teve que se imobilizar. Apalpou o terreno à sua frente e encontrou um painel com instrumentos e botões. Carregou num botão à sorte para ver o que acontecia…

Houve um deslizamento de areias e terras, e ele ficou com uma clareira subterrânea à vista. No centro, havia uma presença feminina, parecia uma sacerdotisa com uma túnica comprida e um porte majestoso. Mas era fugidia, aparecia e desaparecia. O viajante chamou por ela e esperou. Entretanto, continuou a ver os clarões incandescentes provindos de um lugar mais recôndito, nos lados da clareira. Tratou de encontrar a fonte desses clarões: do lado esquerdo viu que havia mais claridade, era uma luz forte, mas difundida, que o impedia de ver bem e de avançar. Nesse momento, sentiu que tinha de se lhe entregar. Tratou, então, de absorver essa luz e, ao fazê-lo, sentiu arrepios no corpo.

Quando esse estado se dissipou, o viajante deparou-se com uma oficina, com ar antigo. Havia um idoso a trabalhar lá. Perguntou-lhe como fazia aqueles clarões e ele disse-lhe que era ferreiro e mostrou-lhe a forja, a bigorna e outras peças metálicas. Tinha colocados uns óculos de aviador para o proteger dos clarões. O viajante pediu-lhe que o ensinasse a fazer aquilo. O ferreiro deu-lhe um pedaço de ferro incandescente, um martelo e disse-lhe que batesse. E ele martelou, sem saber bem para quê e o que iria sair dali. Pouco a pouco foi surgindo uma espada, ele manejou-a um pouco e levou-a consigo. A espada deu-lhe uma sensação de virilidade, como se fosse um guerreiro Viking. Mas, ao mesmo tempo, tomou consciência de que também precisava de ser mais gentil.

Então, dirigiu-se ao outro lado, onde havia uma roda de oleiro, com barro sobre a roda, e tratou de fazer uma peça com as suas mãos. Uma espécie de vasilha. Sentia-se um bocado desajeitado para isso, mas tinha o modelo na sua cabeça e aprimorou-se. Por fim, deixou a vasilha no centro da clareira como uma oferenda.

Continuava a haver clarões que, às vezes, vinham de baixo. Porém, era como se o chão estivesse vidrado e não fosse possível ir até lá. O viajante pegou na espada e espetou-a no solo para abrir uma passagem. Cortou a superfície, abriu um buraco e deixou-se cair, não sem uma certa inquietação com o que podia encontrar em baixo.

Estava escuro em baixo, era o lugar onde estava o medo. E também a ira, a raiva, deu-lhe vontade de partir tudo com a sua espada. Contudo, tratou de se acalmar, esperar. Acendeu uma fogueira e sentou-se com os pés para a chama. Parecia que as chamas dançavam. Era um fogo pequenino e deu-lhe uma certa tristeza, como se não conseguisse que o lume ganhasse mais força.

Nesse instante, aproximou-se uma mulher negra, talvez uma Xamã. Ele pediu-lhe que avivasse o fogo. Ela atirou umas acendalhas e o fogo libertou-se e iluminou a caverna. Havia pinturas rupestres nas paredes. Estava num lugar onde antepassados muito antigos tinham estado noutros tempos. Então, tratou de se colocar no lugar deles. Que sentido tinha para eles fazer aquelas pinturas?... Sentiu-se comovido e acompanhado, tributário de uma longa cadeia de conhecimentos, como se lhe estivessem a passar um testemunho. E ele, ali, perdido no meio do nada em plena escuridão. Compreendeu que tinha de voltar ao mundo e tratou de começar a subir. Levou consigo uma cavaca da fogueira, na qual pegou pelo lado não incandescente.

Havia uma corda para o ajudar a subir. Teve de segurar com firmeza para ir subindo pela parede e ir-se balançando até conseguir chegar à gruta. Uma vez aí, a sacerdotisa deu-lhe um forno pequeno para conservar a cavaca. Atou-lhe um pano e pendurou-a ao ombro, a tiracolo. Avançou até onde terminava o varão metálico, agarrou-o e foi impulsionado para cima. Depois começou a subir pelo caminho e já notava alguma claridade vinda de cima. Chegou à parte final da rampa que entrava na cave, atravessou-a, chegou às escadas, subiu-as e voltou a estar na oficina onde tinha começado o seu périplo. Saiu da mesma e foi até à fonte.

A tarde estava a cair. Subiu para dentro da fonte e esta arrancou como se fosse um foguete a erguer-se no céu. Mas havia dificuldades, sentiu vertigens e o motor da fonte começou a ter falhas. Ainda assim, conseguiu subir acima das copas das árvores e viu uns farrapos de nuvens. Precisava de outro instrumento para continuar a subir. Olhou à volta e avistou um balão próximo. Passou para este e começou a tirar sacos de areia para poder subir mais. Ao fim de um tempo, chegou ao sopé de uma montanha. Soube logo que precisava de chegar ao cume.

Via-se neve no cimo e ele começou a tratar de subir… finalmente, chegou lá. Era bonito! Via-se tudo pequenino lá em baixo, as casas, os campos, os animais. Havia mais gente na montanha, mas ali era longe de tudo. Sabia que havia um eremita que vivia por ali e sentiu que tinha de o ir ver…

O eremita vestia uma túnica branca e tinha barbas brancas. O viajante ofereceu-lhe uma brasa que transportava consigo no forno e pediu-lhe que o orientasse. Era um guia da montanha.

Ele respondeu que tinha de se centrar e ouvir o rumor da montanha. O viajante olhou para o sol, para o entardecer, e sentiu o peso das suas vísceras. Depois, ergueu a espada acima da cabeça e um raio luminoso atingiu a lâmina; sentiu o impacto da energia no seu corpo e os seus olhos iluminaram-se durante algum tempo, como num breve transe.

No final, o guia, até aí em silêncio, disse-lhe que havia uma realidade muito maior do que os problemas pessoais quotidianos. E que ele podia conectar-se com ela, embora não a visse. O viajante agradeceu-lhe a experiência e sentiu-se grato por tudo o que havia vivido e a todas as pessoas com quem se tinha cruzado.

Nesse instante, soube que tinha de partilhar este descobrimento, embora sentisse uma sombra no seu coração.

No seu íntimo, intuía que lá em cima era onde estava a cidade escondida. Mas chegar lá era outra aventura. Tinha de fazer outras coisas ainda.

Assim, pediu para levar algo daquele lugar que o ajudasse no quotidiano. Então, um diamante depositou-se na palma da sua mão. A luz refletia-se nele em todas as direções e o viajante olhou-o com admiração.

Nesse momento, um pio soou nos céus, aproximou-se um pássaro grande, talvez uma águia, em voo majestoso e o viajante apanhou boleia dele até à aldeia mais próxima. Era uma aldeia de montanha. Entrou no balão que o tinha trazido até ali e foi voando até se aproximar do Parque de onde tinha partido, começar a perder altitude e aterrar no meio deste».

Embora possa parecer, a narrativa acima transcrita não é a lenda de um herói, um relato mítico, um sonho, o argumento de um filme fantástico ou de um videojogo, mas tem elementos comuns com todos eles.

Trata-se, na verdade, de uma narrativa alegórica resultante de uma prática ou exercício de transferência.

A transferência é uma técnica que opera no campo da representação interna, descarregando tensões internas de uns conteúdos mentais e levando as suas cargas para outros, com o propósito de deixar a consciência em condições de ampliar as suas possibilidades. O trabalho com as transferências visa dar coerência ao mundo interno e, consequentemente, coerência à conduta humana no mundo, abrindo possibilidades para a evolução da mente.

Nesse sentido, é uma importante ferramenta de transformação pessoal e social, mas também um trabalho lúdico e instrutivo.

Por isso, aproveitando o tempo de férias, deixo aqui o convite aos leitores interessados nestas temáticas para participarem num seminário sobre introdução à transferência, que terá lugar no Parque de Estudo e Reflexão Minho, no próximo dia 20 de agosto, mediante prévia inscrição através do e-mail [email protected] .

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

[email protected]


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