Paulo Fidalgo
O patrão, os empregados e o público
“O negócio não pertence ao patrão ou aos empregados, mas ao público” escreveu Henry Ford (traduzido e comentado por Fernando Pessoa) como um dos seus “mandamentos industriais”, com cuja divulgação procurou explicar o seu sucesso e continuar a promover os seus carros.
Ao enunciar este mandamento, o multimilionário americano estabelecia um dos princípios básicos da gestão moderna e uma das leis fundamentais do marketing, afirmando a soberania do público – leia-se consumidores e opinião pública – sobre o processo comercial, em detrimento da vontade interna da empresa.
O que se constitui como evidência nesta constatação de Henry Ford é que de nada vale o direito legal de propriedade sobre a empresa (patrão) ou o domínio técnico sobre o processo empresarial (empregados) se os destinatários da actividade de um e outros (Clientes) se alhearem dos méritos e da utilidade produzida e comercializada, negando-lhe a única razão de existência – o sucesso de vendas.
O sucesso comercial será, pois, uma consequência da estima e da preferência dos consumidores pelo que a empresa oferece (produto e serviço) e não propriamente um acto económico de generosidade provocado pela enorme admiração pessoal que sentem pelo patrão ou pelos empregados.
Perceber e aceitar esta realidade é muito importante para quem se vai lançar num negócio, porque, na maioria das vezes, a atenção do empreendedor é sistematicamente disputada por toda uma série de estímulos e preocupações de natureza puramente processual, acabando por perder de vista a razão última de todo o projecto e de todo o esforço – vender qualquer coisa a alguém.
Na mesma lógica, muitas empresas aparentemente bem estabelecidas arrastam-se até à agonia em devaneios estratégicos ou lutas internas, deixando que o Cliente perceba a desatenção e desafecto com que o tratam, como se o Cliente fosse apenas mais um contratempo – o mais chato e menos importante de todos.
Aceitar que o Público é o único dono verdadeiro do negócio tem um vasto conjunto de implicações, a mais importante das quais é a relativização do poder do patrão e dos empregados no contexto da empresa.
Para o patrão, significa que assegurar e exibir os direitos de propriedade sobre edifícios, o mobiliário e as máquinas necessárias ao processo produtivo não garante um resultado económico positivo e, sem este, tais direitos são um desperdício de património ou uma dívida irracional.
Assim, nada de mais ridículo existe no mundo empresarial do que ver um patrão mais preocupado com a decoração do gabinete ou a arquitectura da sede do que com o nível de acerto que se estabelece entre a sua oferta comercial e o público em geral.
Na mesma ordem de ideias, é grave insensatez de um trabalhador aplicar energias e talento numa luta permanente contra o patrão, tentando exigir dele o que o negócio não pode dar.
Tomando o patrão como adversário estratégico jamais poderá ser seu sócio e esse deveria ser o mais importante objectivo de qualquer empregado. Não que se admita com realismo a possibilidade geral de os empregados poderem vir a ser de facto sócios dos patrões, mas no plano dos objectivos de reivindicação plausível essa deveria ser a ambição de todos.
Porque o patrão só pode partilhar com os empregados resultados produzidos com o seu trabalho no negócio em que ambos se implicam, não sendo nem razoável nem ético imaginar que o patrão vai preferir os empregados à família e aos amigos quando se trata de dividir o seu património pessoal.
Ao disputar com o patrão o poder de conduzir o negócio ou ao incapacitar a gestão com bloqueios de ordem interna, os empregados têm escassa probabilidade de ver aumentados os resultados do negócio e, por consequência, a sua remuneração ou participação nos lucros.
Boa estratégia seria os empregados constituírem-se como exigência de competência aos patrões, incentivando-os ou mesmo impondo-lhes uma atenção permanente ao público e às vendas, em ordem a garantir que o resultado económico positivo é perene e crescente.
Procurando conhecer a verdadeira situação do negócio, entendendo o modo como o dinheiro se ganha e se gasta, os empregados cumprem um papel que se aproxima do sócio e não só é justo como racional que, sem prejuízo da diferença de remuneração pelos riscos assumidos pelo patrão, aspirem a tomar para si uma parte negociada do resultado.
Nas grandes empresas, há muito que este modo de ver tem sido tentativamente implantado, optando-se por estabelecer plataformas de interesse comum na partilha de lucros que viabilizem uma cumplicidade efectiva entre patrões e empregados na luta pela preferência do público, contra a concorrência.
A questão nas grandes empresas é que, por vezes, a distância física, a dispersão geográfica e a especialização de funções geram dificuldades específicas de articulação entre o que poderíamos chamar de patrão e os empregados.
Desde logo porque, dada a natureza de sociedade anónima, a dispersão de capital, a livre transacção em bolsa e as regulamentações várias que sujeitam a maioria das actividades interessantes, o patrão não existe e o poder interno reflecte alinhamentos sempre provisórios dos interesses de accionistas, com muita dose de acaso à mistura.
Nestas situações é inevitável que o poder, tradicionalmente pertença do patrão, seja exercido por pessoas que, ao fim e ao cabo, também são empregados. Para que isto seja viável e funcione, a organização tem de estruturar-se por níveis de autoridade e estabelecer regras que estimulem uma prática de gestão racional e psicologicamente saudável.
Impor a racionalidade à gestão, quando esta não é exercida pelo patrão mas pelos empregados gestores, significa estabelecer razões concretas para que os profissionais contratados para gerir se comportem como se a empresa fosse deles mas sem lhes permitir apropriarem-se do que não lhes pertence por contrato.
Qualquer mal-entendido sobre quem manda efectivamente na empresa resultará sempre de se ter perdido a consciência da soberania do Público sobre qualquer outra instância de poder interno. E quando isso acontece, a empresa já iniciou um percurso de perdas e conflitos que a levará ao abismo.