Fernando Campos Gouveia
O Presidente
Já não há noites eleitorais como as do século passado, que se prolongavam por intensas madrugadas de debates, de comentários, de subidas e descidas, de informações avulsas recolhidas pelos círculos eleitorais. A informática reduziu a gestão de expectativas e ansiedades a uma ligeira antecipação ou prolongamento do telejornal das oito, de modo que, duas horas depois do encerramento das urnas, a missa está dita e o veredicto formado.
Acabamos, desta forma, por saber o que as indicações das sondagens antecipavam: temos presidente eleito à primeira volta, terminando uma campanha que todos dizem ter sido apagada. Marcelo Rebelo de Sousa acabou por confirmar um fenómeno dos tempos modernos, a saber, o do poder dos meios de comunicação social, com predominância ainda da televisão, para conformar a opinião mediana, as aspirações, as frustrações, em suma, o comportamento normalizado da maioria da população.
Houve, porém, alguma coisa nesta eleição que a distingue das antecedentes eleições presidenciais e que pode indiciar um desvio do anterior padrão: a distância que a maioria dos candidatos evidenciou em relação aos partidos e até um certo afastamento em relação ao exercício do poder. Com efeito, se excluirmos a candidatura de Edgar Silva, assumidamente afirmada como uma intervenção do
A comunicação social, sempre ávida de colonizar as audiências, não teve o cuidado de dar a expressão devida a todos os resultados, como se a eleição se limitasse a uma lotaria em que apenas os bilhetes premiados contam. Seria interessante ouvir os candidatos da segunda parte da lista ordenada, aqueles que se apresentaram como espontâneos, sem apoios e sem ligações, e tentar analisar as votações – em certos casos significativas, como a de Paulo Morais ou de Vitorino Silva – e o que representam.
Também seria necessário analisar a persistente metade do eleitorado que se recusa a votar, não podendo uma comunidade nacional viver com uma metade ausente. E, neste caso, não se pode falar de uma tácita delegação da competência de voto: os abstencionistas não são apenas pessoas pouco informadas, comodistas, egoístas ou anarquistas, mas antes uma grande massa de desiludidos da política, marginalizados por políticas desastrosas, revoltados contra os abusos das elites e os conluios dos políticos com os interesses que têm parasitado o Estado.
Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente eleito, fez um discurso à altura das expectativas: respeitoso em relação aos concorrentes (não há vencidos nesta eleição), assertivo em relação aos equilíbrios dos poderes instituídos, acertado na designação dos princípios orientadores do seu futuro mandato: a imparcialidade, a unidade da Nação, a linha orientadora da ação do Estado, a necessidade da promoção da coesão social e de evitar a exclusão de cidadãos, o necessário combate à corrupção, a necessária vinculação do desenvolvimento económico ao progresso social. Foi um discurso notável, a subscrever um compromisso exigente e a marcar o caminho de um exercício que será difícil mas irrenunciável.
Sampaio da Nóvoa, por seu turno, fez uma declaração brilhante, sem ressentimentos, a exaltar o exercício democrático e a aplanar as paixões de campanha para passar à necessidade da ação comum em benefício dos cidadãos. Cumpriu o importante papel de valorizar a eleição, trazendo à ribalta uma ideia mais ampla de cidadania e de política e um otimismo que faz falta ao país, depressivo mas ansioso de futuro.
Os dois discursos estão a uma altura incomensurável do que foi o discurso da última vitória de Cavaco: nesta, como assinalei na altura própria em crónica aqui publicada, predominou o revanchismo e o divisionismo; Hoje, predominou o consenso, o respeito e a magnanimidade. Alguma coisa se ganhou: a competência supera a visão estreita, uma conceção do mundo alargada supera a estreiteza de quem via números no lugar dos cidadãos.
Assinalável também a honrosa votação de Marisa Matias, a refletir uma excelente campanha de proximidade, de sinceridade, de honestidade, e a concitar a adesão de um eleitorado novo, mais exigente no exercício da política.
Finalmente, a grande desilusão eleitoral, a de Maria Belém Roseira. Não se entendeu muito bem o propósito da candidatura e muito menos se entende o seu apagamento progressivo ao longo da campanha. Se, como entendo, a candidatura procurou acomodar alguns barões da estrutura do partido que engoliram penosamente as opções de António Costa ao formar governo e os necessários acordos à esquerda, esses barões não apareceram na campanha. Por outro lado, à medida que a dissecação dos candidatos apareceu em público, algumas fragilidades éticas desvalorizaram-na perante o eleitorado: os serviços a interesses privados em simultâneo com o exercício de um mandato, mesmo admitidos por uma lei que protege o serralho da política, são muito mal vistos pelos cidadãos; o recurso ao Tribunal Constitucional e a veemente reivindicação de um direito a subvenções vitalícias apareceram como o espelho de uma forma de comportamento elitista, intolerável num momento de especial sacrifício imposto aos cidadãos.
Feitas as contas, parece haver algumas razões de esperança. As eleições presidenciais não abriram novas feridas, antes contribuíram para sarar as existentes. O eleitorado continua a mover‑se e os velhos métodos devem progressivamente dar lugar à dignificação da representação política. Resta, o que não é tarefa menor, demonstrá-lo à metade teimosamente ausente.