Magda Borges
O que diz a França ao mundo?
Nos últimos dias, assistimos perplexos aos eventos que têm tido lugar em França continental e ilhas. Na sequência de um incidente de alegada violência policial, que culmina na morte de um jovem de 17 anos, a França está, literalmente, a saque.
É conhecida a forte veia contestatária dos franceses, capazes de bloquear o país durante meses a fio, causando constrangimentos de toda a ordem. Eu conto-me entre as “vítimas diárias” desta força gaulesa. Mas desta vez é diferente.
Por estes dias não são os coletes amarelos, nem os insatisfeitos com a idade da reforma, que gritam nas ruas. São jovens, grande parte deles menores de idade, que passam noites, e parte dos dias, a destruir tudo à sua passagem, a pilhar lojas, a confrontar-se com as forças da autoridade. A esmagadora maioria não estuda, nem trabalha. Apesar de se enquadrar num perfil de escolarização ou de mercado de trabalho. Fazem parte da geração nem-nem. Saqueiam lojas da Apple, Nike, entre outras, onde encontram produtos do seu agrado.
As movimentações são sobretudo planeadas e articuladas através de Telegram ou Snapchat, segundo avança o jornal Le Monde. As detenções ultrapassam já os três mil indivíduos, com mais de mil imóveis destruídos, centenas de lojas pilhadas, mais de setecentos agentes da autoridade feridos, enfim, o caos instalado. Na Guiana francesa, um homem morreu com uma bala perdida. Na região parisiense, um bombeiro de 24 anos morreu enquanto extinguia um dos muitos incêndios provocados pelos manifestantes. O mais impactante de tudo isto, para além da idade dos protagonistas e do nível de violência, é a abrangência do fenómeno, que vai muito além das grandes metrópoles francesas. Atrevo-me a dizer que, logo desde a primeira noite, estes eventos deixaram de ter lugar em memória do Nahel.
Por que razão é que esta situação deve levar-nos a refletir? Consideramos que em Portugal algo semelhante a este fenómeno seria impossível? Quem viu o filme alemão A Onda (2008), no qual uma experiência de construção de um ambiente autocrático numa escola acaba por degenerar, conhece o poder do, informalmente designado, “efeito manada”. Um ou dois sozinhos nada podem. Em bando são imparáveis.
“Quem são os pais destes jovens e como permitem que saiam de casa para destruir um país?”. Dizem uns. “Onde estão os pais destes vândalos?”. Dizem outros. Tombamos irremediavelmente sobre a questão da parentalidade e da responsabilidade dos pais na educação dos seus filhos.
Alguns entendidos na matéria dizem que esta é a geração dos jogos. Da violência virtual. Do vício que leva ao autoisolamento, ao desenvolvimento de um ódio que não se entende. Uma senhora que interveio enquanto um bando de jovens queimava uma escola, e quase perdeu a vida por isso, dizia aos media que nunca tinha sentido um ódio assim e que não conseguia perceber como era possível pessoas destas idades expressarem tamanho ódio.
Está cientificamente provado que os jovens que apresentam um perfil de utilização dos jogos digitais doentio sofrem profundas alterações em termos de padrões neurológicos.
Os cérebros destes jovens entram em processos de dessensibilização (desensitisation, termo original em Inglês). Ou seja, deixam de responder a estímulos neurológicos emocionais padrão. Não se comovem. Não sentem empatia. Remorso. Culpa. Em suma, tornam-se máquinas disfuncionais incapazes de distinguir a realidade humana da realidade digital. Vivem como se de um jogo digital de tratasse.
Voltemos à parte das responsabilidades. Os culpados somos nós. Nós sociedade. Nós pais.
Começa quando colocamos bebés minúsculos em frente a tablets maiúsculos, horas a fio nos restaurantes, para nos “deixarem jantar tranquilos”. Em seguida, plantamos a descendência em frente a ecrãs de todo o tipo, de manhã à noite. Eles adoram e nós ficamos com mais tempo para as redes sociais e para a Netflix. E que “espertos” que os miúdos são! Já usam o tablet melhor que o papá e que a mamã. Pena é que não admirem as paisagens e as pessoas que passam na rua. Que não brinquem ao ar livre e não escutem uma história. Pena é que não ouçam música. Da de certo. TikTok(s) não incluídos. Pena é que nós não abdiquemos dos nossos confortos adultos e entendamos algo básico: lideramos pelo exemplo e nunca será de outra forma. Os nossos filhos aprendem com o que fazemos. Não com o que dizemos. Sobretudo se houver um fosso planetário entre o que dizemos e fazemos.
Estes miúdos que hoje lançam o caos em França são os filhos de ninguém. São órfãos? Não. São filhos de “pai ausente”. E de mãe também.
Temos que supervisionar o que os nossos filhos fazem online e a quantidade de tempo que passam na utilização destas ferramentas? Temos pois. É o nosso dever enquanto pais. Supervisionar e educar. Criar filhos que sejam capazes de dizer não quando todos dizem sim, se esse sim for profundamente errado e contrário ao quadro de valores que queremos incutir-lhes. Esse é o nosso maior desafio de vida.
O Presidente Macron dizia há poucos dias que o dever de educar é dos pais. Ao Estado competem outro tipo de missões. Estamos completamente de acordo. E se for necessário responsabilizar os pais, responsabilizem-se.
O que está em causa quando olhamos para a França é muito mais que um movimento de jovens desocupados. É o reflexo de décadas de desresponsabilização parental, institucional, política. É o resultado de uma perda de autoridade generalizada em múltiplos quadrantes das sociedades ocidentais. É o expoente máximo da nossa negligência e da nossa rotunda falha enquanto adultos e pais. Somos incompetentes a educar. Pelo egoísmo. Pelo comodismo. Pela tão famosa “falta de tempo”. O álibi perfeito para quem quer demitir-se das suas responsabilidades próprias da idade adulta.
O único e mais precioso “bem” que podemos dar aos nossos filhos (crianças e jovens) é tempo. De qualidade.