Alexandre Parafita
O triunfo do anti-herói
Ao teorizar sobre o inconsciente, há quase um século atrás, Sigmund Freud revolucionou a psicanálise conseguindo interpretar o lado mais irracional e profundo da natureza humana como esse lado oculto que afeta os comportamentos que o indivíduo geralmente recusa aceitar numa dimensão consciente. Se nos transportarmos para o tempo em que assim teorizou, fácil é perceber como já então se profetizava o triunfo de algumas das irracionalidades da primeira metade do século XX, a começar pelo nazismo. Indivíduos que conscientemente não são racistas nem xenófobos, inconscientemente são-no.
Abre-se, pois, nesta dualidade (consciente vs. inconsciente), um caminho fácil ao triunfo dos contrários. E essa exploração dos contrários (que já outros psicanalistas, como Carl Jung, avaliaram num confronto de opostos que procura sublimar a identidade do “eu” num cenário de menosprezo e humilhação do “outro”) continua sendo, ainda hoje, uma estratégia recorrente para atingir e despertar públicos habitualmente indiferentes ou apáticos, e assim confirmar a eficácia desse tal modelo hipodérmico de comunicação preceituado por Lasswell.
Esta constatação não deixa de colocar-nos também perante uma clara problematização de tudo aquilo que se inscreve nos padrões da norma, do convencional, dos valores morais consolidados, em favor de um oculto-subversivo, misterioso, marginal, grotesco até. Ou seja, a sociedade é impelida a admitir uma clara hegemonização de “mitos triviais”, supérfluos, provocadores, o que, inevitavelmente, irá impor também uma revisão do próprio conceito de “herói”.
Na verdade, o herói começa hoje a “medir-se” mais pela capacidade de contrariar o convencional (por exemplo, assumindo a ousadia de um coito em direto na tv…), do que pela capacidade de distinguir-se no quadro daquilo que é convencional. Hoje é mais estimulante assaltar o castelo do que defendê-lo. E esta constatação, se, por um lado, traduz uma rotura com valores do passado (em que os heróis eram aplaudidos pela forma como o defendiam), por outro, não deixará de implicar o risco de estarmos a construir modelos éticos duvidosos e problemáticos para as novas gerações.
Ocorre-me esta breve reflexão apenas e só por ter visto quase 70% da população avaliada em recentes sondagens, aderir positivamente aos discursos racistas e xenófobos de um conhecido candidato às próximas eleições autárquicas.
(in JN, de 11-9-2017)