Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Obras dos Pedreiros: visita guiada com a avó Celina


Celina chegara cedo ao aeródromo para ir buscar os netos que vinham dos EUA. Impaciente, circulava de um lado para o outro, espreitando pelas janelas. Finalmente saía gente do pequeno avião. Lá vinham os netos e o seu coração batia cada vez mais forte.

- Avó, avó… - corria ao seu encontro Madalena deixando o irmão para trás.

Entre abraços e beijos, corriam-lhes lágrimas de felicidade pelo rosto – passaram uns bons anos sem se ver.

- Está tão linda, avó! Não achas Tomás?

- Avó, minha querida avó: prometo que desta vez não faço tantas travessuras. Ainda se lembra quando me pendurei no touro que está naquela rotunda de que já não me lembro o nome?

A avó soltou uma gargalhada – o meu coração ficou mais aflito, Tomás! Pensei que dessa vez rachavas a cabeça.

- A avó ainda está a trabalhar no hospital?

- Reformei-me, meus queridos. Já chegava de hospital e consultório particular. Passei a minha vida a consultar doentes e a fazer cirurgias, um pouco como os vossos pais – estão sempre na Universidade.

- Agora está livre e por nossa conta, avó? Vai levar-nos a relembrar esta velha cidade, as vilas e aldeias circundantes?

- Serei a vossa melhor guia. Conheço esta cidade como ninguém. Mas agora vamos para casa tomar um banho, comer um bom jantar e descansar. Amanhã vereis as surpresas que tenho guardadas.

- A avó continua a conduzir bem. Que agilidade!

- É para me desviar de certos “pedreiros” que por aí andam tresmalhados.

- Não percebi, avó?

- Nem eu. – afirmou Tomás.

- Coisas minhas. A seu tempo terão as respostas certas.

- Vamos subindo. Tomás ajuda a mana com a mala.

Celina tinha caldo verde pronto e frango do campo a assar lentamente no espeto com um tabuleiro de batatas. Fez uma salada com vários legumes e um arroz-doce de ir ao céu e voltar. Foi pondo a mesa com os mimos do costume. Celina gostava e sabia receber bem.

- Meus queridos netos estais tão lindos! Vamos para a mesa, antes que a comida esfrie e fique sem graça. Um mês convosco… Assim dá tempo para fazermos muita coisa, pelo menos o principal. Se amanhã acordarem com força nas pernas e genica, vamos passear a pé pela cidade. Quem quiser conhecer esta cidade tem de fazê-lo a pé. Sirvam-se. Olha agora a fazer cerimónias na casa da avó!

- A sua comida continua maravilhosa, avó.

- Isso é porque já sois crescidos. – e soltou um riso.

- De que está a rir, avó?

- Uma vez, estávamos a comer no quintal, debaixo da latada das uvas e, muito devagarito, desceu uma aranha que caiu no prato da sopa do Tomás. Começou numa pirraça a dizer que já não queria a sopa e por isto e mais aquilo e aqueloutro…. Tirei-lhe o prato da frente e servi-lhe outra sopa. Ficou tão fulo que até bufava.

Riram, todos, a bom rir, com a aranha na sopa.

- Ainda se lembra quando começávamos a dizer que nos doía a barriga para não comermos? Depois…mostrava-nos a caixa dos supositórios e as dores passavam, só de a vermos.

- Olha o que está em cima do aparador?

- Arroz-doce!

- A avó lembra-se de tudo!

- Vá, comam sossegadamente, depois vamos esticar as pernas até à Praça do Cruzeiro. Aguentam?

- Eu estou bem. E tu Madalena?

 - Nunca me nego a uma ida à Praça do Cruzeiro.

O tempo convidava a um passeio a pé e lá foram percorrendo as ruas do bairro de vivendas até chegarem à rotunda do caçador, que os netos ainda não conheciam. Tomás, intrigado com o elemento escultórico perguntou:

- Ó avó! Esta rotunda tem uma pirâmide. Por quê? Engraçado… por este ângulo parece um M meio deitado. Hummm! - disse ele coçando o queixo - Que escultura tão estranha. Será que o M quer dizer montes ou será outra coisa?

- Estás admirado, querido neto? Espera que ainda te vais admirar mais. No fim conversamos em casa. A cidade está muito diferente.

E prosseguiram a caminhada em direção ao quartel dos bombeiros para apreciarem mais uma rotunda e mais um elemento escultórico.

Desta vez foi Madalena quem reparou nas três chamas por detrás do bombeiro.

- Esta também é bem estranha. Então as chamas estão atrás e ele aponta a mangueira para a frente? E por quê 3 chamas avó?

A avó Celina riu-se enquanto lhes indicava o caminho em direção ao edifício da Câmara Municipal que, àquela hora, já estava fechada.

- Esta parte nova, meus queridos, está muito interessante, principalmente o cimo do edifício onde é possível conseguir uma visita guiada. Mas lá dentro também vale a pena fazer uma visita, pois tem muitas obras de Arte.

E foram descendo pelo jardim em frente à Câmara.

De repente Tomás detém-se e começa a observar a calçada portuguesa entre os canteiros:

- Lembro-me que isto era em saibro, mas agora está calcetado. Ó avó, mas que raio de símbolos são estes? Isto está cheio de triângulos e está aqui um pentagrama enorme!

Entretanto Madalena, que descia pelo outro lado do jardim exclamou:

- Olhem, aqui está uma estrela de seis pontas! - e atravessou a rua para ver o pentagrama, enquanto Tomás ia observar o que ela havia descoberto.

Continuando a descer depararam-se com mais uma rotunda, com um enorme conjunto escultórico ao centro que os jovens já conheciam, mas não se lembravam dele.

- Avó, isto representa o esquadro e o compasso dos pedreiros, não é? - perguntou Tomás.

- Querido neto, o que a Câmara diz é que são as portas da cidade.

Os netos soltaram uma sonora gargalhada a que se juntou a da avó.

- Acho que começo a perceber a razão da existência destes símbolos todos. - disse Madalena; a avó piscou-lhe o olho.

E prosseguiram passando em frente ao antigo Liceu, desceram umas escadas para a rua de baixo, caminhando em direção ao Tribunal para os jovens matarem saudades da taça do peixe rodeada de enormes tílias.

Tomás olhou estupefacto para a recém requalificada calçada portuguesa na Praça.

- Ó avó, desculpe lá, mas isto está horrível! Estes quadrados pretos e brancos ficam pavorosos aqui, e não têm nada a ver com a linda calçada portuguesa que aqui havia.

- Tomás, anda cá ver isto, tem aqui um sol e ali está uma lua.

Os jovens começaram a caminhar em torno da taça do peixe para observarem melhor a calçada portuguesa e os símbolos que lá estavam.

- Olha Madalena, está ali outro pentagrama, mas está dentro de um círculo negro.

- Mas visto deste lado, em vez de parecer uma estrela de cinco pontas, parece a cabeça de um bode. - respondeu Madalena.

- Olha, dentro deste hexágono alongado, há um triângulo pequenino.

A avó Celina observava-os em silêncio…

- Estou triste avó. - disse Tomás. - Até agora vi que a cidade progrediu muito, mas detesto estas obras escultóricas e esta nova calçada portuguesa. São horríveis! Não me diga que isto tudo foi pago com dinheiro público!?

- Claro que foi, meu querido neto.

Seguiram pelos Correios onde viram a escultura do carteiro enquadrada numa espécie de portal, a que os jovens torceram o nariz.

- Mais um símbolo esquisito, disseram em uníssono.

Começaram a descer a rua em direção à Praça do Cruzeiro e repararam nas caixas de eletricidade pintadas com caretos (já tinham reparado numa outra junto ao antigo Banco Ultramarino).

- Ó avó, porque pintaram tantos caretos nas caixas de eletricidade? Esta não é uma cidade com tradição de caretos. Eu lembro-me dos pais nos contarem que a tradição era a morte, o diabo e a censura na Quarta-Feira de Cinzas, não era os caretos?! - observou a Madalena.

- Pois, mas agora os tais “pedreiros” de que vos falei há pouco, decidiram que os caretos são tradição da cidade, e mais: decidiram que sempre foi assim!

- Gente com um parafuso a menos, só pode. - concluiu o Tomás. - Devem pensar que são os donos disto tudo.

- Chegámos à nossa querida Praça do Cruzeiro. Esta, por enquanto, mantém-se sem grandes alterações. Vamos lá tomar um café. Olhem, já viram quem está ali? Não são aqueles vossos amigos com quem vocês adoravam brincar quando eram pequenitos? Vão lá ter com eles que já me sento aqui com os meus colegas. Depois em casa falamos sobre tudo isto que viram e faremos planos para vermos muito mais, mas do mesmo género, porque esta arte está espalhada pela cidade e não só.

Acordaram cedo com vontade de saber o que a avó decidira fazer.

- Bom dia, avó!

- Bom dia, meus queridos! Sentai-vos que o pequeno-almoço está pronto.

- Aonde vamos, hoje, avó?

- Vamos até Podence. Já ouviram falar nos Caretos de Podence?

- Ouvimos os pais dizer que ganharam a distinção da UNESCO – são Património Cultural Imaterial da Humanidade.

- E tudo graças a um homem que não se vergou – António Valente Carneiro. É claro que teve o apoio da Junta de Freguesia, da Câmara e da população, mas é devido à sua força e determinação que se deve a distinção da UNESCO. Há tempos, conversando com ele, pedi-lhe para não deixar lá entrar estes ideólogos da transformação das verdadeiras tradições em versões turistificadas, adulterando o que é tão genuíno, virando uma "transdição" cheia de negatividade como tem sido feito no Serra da Belha, na Festa do Canhoto e da Cabra, nos Mil Diabos à Solta e, também, no Carnaval da Capital do Distrito.

- Despacha-te, Madalena, vamos conhecer Podence.

Num ápice já estavam dentro do carro.

- Vamos pôr gasolina. Tenho receio que não dê para ir e voltar.

Foram às bombas ao pé da moagem. Enquanto a avó tratava do abastecimento, os netos fixavam-se nos painéis de azulejos.

- Que coisa tão estranha, Tomás! Repara naqueles quadradinhos introduzidos à força nos painéis. Parece que são um remendo!

- Avó, olhe estes painéis, se faz favor. Não parece que estão remendados? Será que também são obra de algum “pedreiro” e pagos com dinheiro público?

- Tudo o que tenha a ver com obras artísticas em espaços e edifícios públicos, cai nas mesmas mãos. É um protecionismo exacerbado entre a irmandade dos “pedreiros”, tudo contratado por ajuste direto… Estes painéis foram "restaurados", mas não obedecem ao formato original.  

- Já deu para ver que, por estas bandas, reinam em grande.

- Depois, temos de visitar umas aldeias e vilas do distrito porque há por lá mais azulejos remendados, como tu dizes, pintados pelo mesmo artista. Aliás até os há no edifício da Câmara!

- Ena! Então o tipo, se só lhe encomendam as obras a ele, deve andar cheio de massa?! - respondeu Madalena.

À saída observaram mais uma rotunda com um enorme conjunto escultórico constituído por três colunas de pedra rodeadas por vários blocos e um repuxo ao centro. A avó parou o carro para que os jovens o pudessem observar. Lembravam-se dele, mas agora olhavam-no com outra perceção.

- Mais uma escultura horrível e sem lógica, comentou o Tomás.

- Sobre esta, o povo até lhe atribui um nome nada simpático, aludindo ao falo do homem que se lembrou de a mandar fazer. Depois analisamos melhor o conjunto, porque agora temos de nos despachar e ir conversando acerca dos caretos de Podence, esses sim, verdadeira tradição nessa aldeia e não são como aquilo que andam a impor por aqui. E quanto às esculturas em rotundas e não só, fiquem sabendo que estão espalhadas por toda a cidade e algumas têm muito que nos deixe a pensar, sobre o que simbolizam e sobre o porquê de estarem naquele local.

Chegados a Podence, depararam-se com as pinturas murais que por lá decoram a pequena aldeia. Foram ao Museu e passearam-se pelas ruas. Entraram na Igreja que tem estado em restauro e ficaram embasbacados com a beleza. Encontraram na rua o Presidente da Junta, que lhes falou com todo o calor e agrado da tradição dos Caretos. Ficaram a saber que os garotos que se vestem de Caretos se chamam Facanitos.

Passaram a manhã por ali e foram depois almoçar ao Azibo para se deliciarem com a praia durante a tarde.

À noite estavam exaustos. Ainda assim, não deixaram de se dirigir à biblioteca da avó, afim de escolherem uns livros para ler.

- Moral e Dogma, muito bem Madalena, escolheste um livro interessante. Era do teu avô, ele interessava-se por estas coisas, mas não era “pedreiro”.

- Eu prefiro ler este sobre as Linhas de Hartmann. - respondeu Tomás.

- Também é uma boa escolha. Depois havemos de falar sobre egrégoras. Acho que até há aí um livro do teu avô. Vou deitar-me, estou cansada. Bom descanso meus queridos.

À mesa do pequeno-almoço os jovens referiram-se às leituras da noite e Tomás, rindo, disse que estava a começar a perceber a localização de algumas esculturas.

- Ó avó, eu não gosto daquilo, pronto, é o meu gosto pessoal. Mas não entendo a razão dessas pessoas imporem a crença delas aos cidadãos, espalhando esses símbolos pelas cidades, vilas e aldeias e ainda por cima o trabalho é pago com dinheiro do estado e sem haver um concurso público. Isso não é nada democrático. Então para que é que houve a revolução de abril?

- Meus queridos netos: há muito tempo que andamos a "desabrilar"…

FIM

Nota: Este texto é uma obra de ficção e deve ser lido apenas como tal, embora baseado em elementos reais, como por exemplo: os Caretos de Podence.


Foto retirada da página https://www.facebook.com/profile.php?id=100064391575530








Fotos recolhidas no site https://bragancaentrecolunas.weebly.com/


Foto de arquivo do Jornal Diário de Trás-os-Montes
https://www.diariodetrasosmontes.com/noticia/hernani-dias-quer-somar-mais-um-mandato-a-24-anos-de-psd

© 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝒅𝒐 𝑨𝒎𝒑𝒂𝒓𝒐 𝑭𝒆𝒓𝒓𝒆𝒊𝒓𝒂, 08-09-2023

      𝑵𝒂𝒕𝒖𝒓𝒂𝒍 𝒅𝒆 𝑻𝒐𝒓𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑫𝒐𝒏𝒂 𝑪𝒉𝒂𝒎𝒂,
      𝑴𝒊𝒓𝒂𝒏𝒅𝒆𝒍𝒂, 𝑩𝒓𝒂𝒈𝒂𝒏ç𝒂, 𝑷𝒐𝒓𝒕𝒖𝒈𝒂𝒍. 


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