Manuel Igreja
Os comboios do nosso descontentamento
Ainda muito recentemente calhou a estar no átrio da estação dos combóis na Régua e tive vergonha para não dizer oura coisa. No fundo, no fundo, foi mais até uma certa revolva que se me desenvolveu nas estranhas ao deparar-me com algo que lhes vou falar se fizerem o especial obséquio de me ler.
Não que passada a porta e em eu redor houvesse desarrumação, sujidade ou ar de desmazelo, que lá nisso mais coisa menos coisa estava tubo um brinquinho, como se costuma dizer, olhando ás circunstâncias, pois ninguém quer grandes luxos por ali. Por aí, não há reparo que se deva fazer. É aquilo e pronto.
O que me fez incómodo ao ponto de aqui estar com isto, foi outra coisa. Na linha em frente dos meus olhos, estava prestes a arrancar, a iniciar viagem, um dos poucos e míseros comboios em circulação na outrora muito importante Linha do Douro. Confesso que nem reparei se ia para cima ou se ia para baixo, mas isso pouco conta pois é outra a conversa que aqui vos quero deixar.
Seguindo pois então. Parecia um calhambeque a coitada e velha composição obrigada a ser outra vez meio de deslocação. Até tive pena dela, já que hoje em dia é moda ter pena de tudo, exceto de nossos semelhantes. Naquele desgraçado estado, já não devia ser meio de transporte, mas é o que lhe exigem e a nós nos disponibilizam.
Nem vi o arranque da geringonça pois desviei o olhar e virei as costas, mas nada me custa crer que o acordar do motor logo nos primeiros metros tenha provocado ricos de desconchavo assim ao jeito de brinquedo pontapeado por criança traquina. Não se desmanchou de certeza porque se não ouviu falar de tal coisa. Muito bem apertados devem estar aqueles enormes parafusos. Foi e veio e voltou a ir, digo eu.
Cumprindo o seu fado, lá irá andando até que a encostem a um canto sem honra nem glória entregue à corrosão naquilo que não for aproveitável, pois para isso é que há o ferro-velho. A sucata mais anos menos anos, é o seu destino. Pouco para lá irá de resto. Repare-se na chaparia que a cobre e moldura e logo se concluirá. Aquilo de tanto podre mais parece maçã que levou tombo e ficou a apodrecer lentamente antes de ir para o lixo.
Tenho muito pena do estado a que isto chegou pois sou um fervoroso adepto do caminho-de-ferro como meio de transporte e auguro-lhe grande futuro. Mas naquele comboio em concreto, a sério que entraria a medo nem que fosse para uma viagem até Covelinhas ou Barqueiros que é uma escanchinha como bem sabemos.
Desde há muito que tenho a sensação de que no que se refere à Linha do Douro, alguém deve pensar que nós por cá somos bisonhos ou até alienados, e mais não merecemos do que ficarmos a ver passar os comboios noutros lados. Pelo menos antes ainda apitavam e era lindo de se ouvir. Disponibilizam-nos estes se calhar porque futuram que viajamos no comboio com cestas merendeiras numa mão e garrafão na outra, levando pitas vivas e coelhos em gaiolas.
Sei lá. São capazes de tudo esses doutos senhores acomodados em gabinetes para quem a importâncias das regiões e a atenção merecida se mede pelo número de votos contados nas eleições. Qualquer dossiê que nos diga respeito, fica arquivado numa qualquer pasta do computador. Vai para as calendas gregas, como se costuma dizer. Nós não nos apoquentamos, e eles não se aperreiam connosco, ainda que passem por cá de oras em quando e jurem o contrário a pés juntos depois de se deliciarem com o que temos. Até se lambem.
Ainda há meia dúzia de meses uns senhores muito bem-postos e muito cheios de si, afirmarem na Régua que se iria proceder à requalificação e à eletrificação da Linha do Douro muito brevemente, mas, pouco depois foi publicado o plano de investimentos para as vias férreas e sobre esta, nem um ponto. Nem uma linha de intenção se lhe imprimiu. Devem pensar que a Linha do Douro começa em S. Bento e acaba em Vila Meã. Neste ponto, também me ocorre que é de propósito. Para rentabilidade da autoestrada com túnel novo e tudo, não convirá dotar a região de um meio alternativo rápido, cómodo o e seguro. A ser assim, enchiam-se mais os combóis, mas esvaziavam-se mais a A24 e a A4. Não sei. Digo eu.
Quem não quiser ou puder perder um dia, para ir à cidade grande, ao Porto, tratar de um assunto qualquer nem que demore pouco, que tire o popó da garagem pois se tem rodas é para andar. O comboio fica para quem tiver mais pachorra ou não tenha outro remédio. Diziam os antigos que o que não tem este, remediado está, por isso estamos conversados, até porque o tempo Deus Nosso Senhor o dá de graça.
Também gratuita vai sendo a paciência. Pena é que se nos não esgote de vez, para ver se deixamos de andar a ver os pássaros pela barriga e os comboios a passar apesar de todo o nosso descontentamento.