Manuel Igreja
Os Cravos
Naquele país não muito distante, o cravo é muito mais que uma flor. É um símbolo. Foi num dia logo pela manhazinha, andando os saldados nas ruas da capital a semear a democracia e a estacar a liberdade, num repente, viram-se os cravos a florir na ponta das espingardas sempre tão pesadas para quem as não quer usar.
Estava-se em Abril, era Primavera, mas não foi por isso. Há quem diga que foi por causa dos ventos da generosidade que traziam a poesia à solta, há quem diga que foi um mero acaso, há quem não perceba nem queira perceber porque aconteceu, mas o certo é que a partir daí o cravo na lapela a todos fica bem dando muito jeito a certos filhos da mãe como diz uma cantiga.
O que se sabe hoje em dia, é que valeu a pena o povo na rua e mais as tropas, naquela madrugada que se esperava, num dia inteiro e limpo, como escreveu Sophia, poetisa maior em nação de poetas. Um regime fora de contexto e do tempo caiu, possibilitando que se erguesse um outro, que não sendo perfeito é o melhor que se inventou até hoje.
Custou, houve contratempos e tentativas de se levar o barco contra a maré, mas como se sabia bem qual era o porto de destino, os ventos foram e são suficientemente favoráveis para se ir indo rumo ao destino. A viagem ainda continua. A tripulação de um modo geral é convicta. Alguma não o sendo lá se ajeita.
No entanto, nem sempre existe a noção de que não basta que os cravos tenham florido para que a democracia e mais a liberdade se afirmem. Por vezes, muito frequentemente mesmo, cada qual esquece-se de que uma e outra começam e acabam na postura de cada um. Falta essencialmente a noção de que elas bem como tudo o que se quer resultam antes de mais de uma construção individual à medida dos sonhos que se nos desenrolam.
Ao longo das décadas de navegação, não faltaram erros de postura e más acções, da parte dos timoneiros escolhidos pela vontade maioritária da nação. Aliás, dizem as crónicas e a realidade sentida, que a coisa foi comum a praticamente todas as naus da frota espalhas pelos diversos mares, se assim quisermos chamar aos países em que porque democráticos e livres, muitas coisas são menos supostas.
No tal, aqui objecto principal da nossa atenção, porque é o nosso, a páginas tantas começou-se a questionar a validade dos cravos. O desânimo e a descrença minam os alicerces da obra permanente e iniciada no ano de mil novecentos e setenta e quatro. A decência foi esquecida e a esperança quase morreu.
Dizem alguns, e parece que é verdade, que com a recente eleição de um Presidente-Rei, se está a conseguir um ainda ténue vislumbre da força do acreditar. Vale a pena fazermos força para que sim. Pode ser que os cravos mesmo na mão voltem a apontar a dimensão dos nossos desejos neste campo florido que se chama Portugal.