Ana Soares

Ana Soares

Os Filhos não nos pertencem...

O surto de sarampo que está a afectar vários países europeus, entre os quais o nosso, relançou um debate aceso sobre a vacinação. Ainda que todas as opiniões sejam válidas, a verdade é que a internet favorece, sobretudo nas redes sociais, o extremar de posições e que os discursos passem, em muito momentos, por ataques de ódio ou defesa cega. Tentarei partilhar a minha posição com alguma serenidade. Para isso escreverei certamente a crónica mais longa que alguma vez publiquei, mas não consigo abordar o assunto de forma (mais) breve.

Desengane-se quem relaciona serenidade com dubiedade ou com uma crónica politicamente correcta. A vacinação, na minha opinião, deveria ser obrigatória. Por um lado, porque não pode ser escolha dos Pais colocar em risco a saúde ou a vida dos próprios Filhos. Por outro, porque coloca também terceiros em causa por comprometer a imunidade de grupo. Vamos por partes.

Está na moda estar contra aquilo que são as opções gerais da sociedade. Mas, sejamos claros, haver quem esteja contra a vacinação é a prova de que os planos de vacinação funcionaram e as doenças foram controladas pois, só o facto de não convivermos com elas frequentemente nos leva a esquecer as suas consequências.

De facto, temos à mão de semear ingredientes necessários para uma receita perigosa: ignorância, um mar de informação (alguma de veracidade duvidosa) e necessidade de uma causa) e pufff. Fazem-se movimentos contra tudo e mais um par de botas.

E não quero com isto dizer que a medicina deva ter dogmas, até porque sendo ciência é exactamente o seu oposto, debate, questiona, experimenta. Mas isto é a medicina e quem a exerce. O “doctor Google” não é uma clínica ou um consultório médico. Tem inúmeras vantagens, mas esta não é uma delas. Eu própria posso difundir um artigo científico sem ter a menor formação para isso. Há que ser frontal: não vacinar não é uma decisão individual, desde logo porque os Filhos não são o “indivíduo” dos Pais e depois porque pode desencadear (como já vimos) surtos com consequências graves. Ou melhor, com a mais grave de todas, a morte. Devemos procurar, ler e aconselharmo-nos, claro. Mas nunca sem termos a certeza da fonte da informação. Eu própria, em conjunto com o meu Marido, sempre que vacinei a minha Filha li muito e questionei a Pediatra (em quem confio) sobre cada uma das vacinas, seja do Plano Nacional de Vacinação (PNV) quer não seja e, depois de informada dos riscos e benefícios, prossegui com o plano de vacinação.

Se uma criança andar no carro sem cadeirinha apropriada pode dar aso a acusação de morte por negligência, o que deveria acontecer com morte por não vacinação. Não nos esqueçamos que há casos em que crianças saem magoadas de acidentes de viação pelas próprias cadeirinhas que têm por missão protege-las mas… O valor residual não é largamente compensado? Penso que ninguém o questiona…

O surto de sarampo tem sido relacionado com pessoas que não querem vacinar os Filhos o que, permitam-me a sinceridade, além de estar na moda tem – muitas vezes – como base ignorância histórica, teorias da conspiração e informação viciada. Obviamente que excepciono quem, por motivos médicos, não pode ser vacinado.

As doenças cuja vacinas constam do PNV passaram a estar praticamente controladas por três factores essenciais: qualidade da água, saneamento básico e vacinação. Não sou eu que o digo. São estudo, diversos e de origens variadas, que o comprovam. Além dessa enorme conspiração chamada “História Mundial”.

A questão que se coloca é também se preferimos uma medicina preventiva ou curativa. E se a resposta é a primeira não me é suficiente que o PNV seja “fortemente recomendado”, universal e gratuito. Se é fortemente obrigatório é porque, analisado o custo-benefício, o mesmo é benéfico para a saúde. E com a saúde da minha Filha, e com as dos outros, agradeço que não se brinque.

O sarampo não é uma doença simples reduzida à imagem das “bolinhas” (sinais de Koplik) no corpo. Eu própria tive que me informar sobre o que era para não falar sem saber, tendo noção que a minha formação é bem longe desta área. Mas sabendo o grau de contágio e o facto de não ter cura, a imunização com as duas doses da vacina tríplice é o caminho a seguir não por quem quer, mas pela sociedade.

E a quem defende que o Filho “ganhe” a imunidade pelas doenças e não pelas vacinas… Nessa altura não trata os Filhos com químicos? Ou se o sistema imunitário não for suficiente continuamos com o discurso radical de “não quero químicos no corpo do meu Filho”? É que a isso não se chama opção, o nome está algures no Código Penal… Já para não falar que imagino que estas crianças não comam nada com conservantes, ou aí seria demasiado radical? Já para não falar do custo, bem visível em Inglaterra com o que aconteceu no último grande surto de tosse convulsa, para o Sistema Nacional de Saúde que, em vez de vacinas, teve de apostar em tratamentos duros e longos que infelizmente não conseguiram salvar muitas crianças da morte ou de danos permanentes.

Como Pais temos que zelar pelos superiores interesses dos nossos Filhos, garantir o seu bem-estar. É que não há controvérsia científica sobre as vacinas incluídas no PNV. Há debate científico, e ainda bem, mas não quanto às vantagens da vacinação (no que concerne às incluídas no PNV) face aos riscos que representam. Portanto a questão fulcral é política e está relacionada com o papel do Estado. Se já afirmei a minha posição supra, mais questiono: se o Direito à Saúde e à vida são constitucionais, onde está o espaço de liberdade pessoal (não da “pessoa” em causa, mas dos seus representantes)? Se são Direitos individuais são direitos da criança, não nossos, seus Pais. Exactamente o mesmo motivo que leva o Estado a intervir – e bem – quando estão em causa maus-tratos ou abusos. Estamos, no meu entender, perante um “abuso de poder”.

Sem dúvida que concretizar esta protecção é uma matéria sensível e não descuro o papel da informação e pedagogia: há que reforçar e manter. Mas como se tem revelado insuficiente, temos que ir mais longe. Não considero que a proibição de matrícula ou a punição dos Pais seja o caminho, porque não podemos penalizar a criança. Parece-me, como já tenho lido, que o caminho será o Estado assegurar a vacinação das crianças dos Pais que, depois de ser obrigatório por lei (o que espero que venha a ser), não o façam.

Não sou moralista nem a guardiã da verdade. Estou certa que quem não vacina os Filhos é porque crê que é o melhor para eles. Respeitemos sobretudo os Pais que perderam a Filha de 17 anos e não os vexemos, como infelizmente tenho lido nas redes sociais, até porque há – para já – muitas dúvidas concretas e poucas certezas, sobre o motivo pelo qual não era vacinada. Morreu uma jovem e nada a fará voltar. Os Pais já terão que viver com uma ausência terrível, que espero que Deus me dê a graça de nunca conhecer na primeira pessoa. Acompanhemos quem passa por esta terrível dor.

Sejamos arrogantes e defensores das causas mais absurdas que existam; contra ou a favor de valores e opções (nossas),…. Percamos todo o tempo do mundo a escolher a roupa, a educação, o tipo de relação que temos com os nossos Filhos e tudo e mais alguma coisa que não interfira com a saúde, segurança e qualidade de vida dos nossos Filhos e Filhos dos outros. Mas nunca pondo em causa as crianças. Não deixemos que a memória destas doenças nos seja refrescada pela realidade. E, sobretudo, não nos esqueçamos que os nossos Filhos estão a nosso cargo, mas não nos pertencem e não merecem que os façamos recuar a tempos dolorosos em que a medicina não podia prevenir como faz hoje.


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