Chrys Chrystello
Os sinos da minha aldeia
Quando me mudei para as ilhas em julho 2005, a primeira coisa que estranhei eram os toques do cimo da igreja a menos de cem metros de casa. Naquela altura tocavam as horas, meias horas e os outros toques todos. Uns anos mais tarde vieram as modernices eletrónicas e os sinos passara a ser automáticos, sem presença humana a movimentar as pesadas cordas para assinalar eventos ou horas.
Depois habituei-me a ouvir o sino a chamar para a missa, anunciar mortes, batizados ou casamentos, sem descortinar alguns desses toques a desoras, quando não eram chamadas para novenas ou outras práticas.
Se estava ao telefone com alguém da cidade, logo me perguntavam que som era aquele que penetrava e chegava, do outro lado, à Península Ibérica a anunciar ou as horas ou outro evento, e a que as pessoas se haviam desacostumado de ouvir há muito tempo. Na cidade não há lugar para sinos nem seus toques, a cidade não tem tempo para essas ancestralidades arcaicas. Ao longo dos tempos mais recentes houve quem se queixasse dos toques e apresentasse queixas na GNR, em várias aldeias de Portugal, gente de modernices sem sentimentos pelas tradições, a que chamam poluição sonora.
Dizem-me que o toque de finados (toque de dobragem) é diferente para homem e mulher, com uma sequência diferente, mas eu nunca a cheguei a aprender. Nunca ouvi o toque de fogo e durante a pandemia os sinos davam as horas e os toques de por quem os sinos dobram. Contaram-me que os sinos chamam para o “Angelus” ou Ave-Maria ao meia dia, as Trindades ao anoitecer, a Eucaristia e outros momentos religiosos. Sabia-se que a missa se aproximava do fim com o toque de “levantar a Deus” e ia-se ver quem saía, como estavam vestidos, quem tinha ficado à porta da igreja, quem tinha entrado, quem saía da tasca apressadamente rumo à porta da igreja.
Curiosamente há já quem estude o valor artístico e cultural dos sinos quem grave esses sons cujo significado se começa a perder para os mais novos que com os seus “smartphones” não precisam do toque de sinos para saberem as horas. Sábados e domingos há sons repetitivos e urgentes e esses, eu sei, são os da chamamento para a missa, e representam a ancestral voz do povo que por eles sempre se regeu ao longo dos séculos para funções civis, religiosas ou até mágicas.
As que primeiro começaram a desaparecer foram os toques de rebate em caso de incêndio ou outra calamidade, e há muito que não há toques para juntar o gado como era costume em terras transmontanas. Já não se usa o toque para a escola e perdura sobremodo o toque das horas, a evocar os tempos em que as pessoas não tinham relógio e se guiavam pelo sol e pelas estrelas, os sinos eram parte integrante da vida das pessoas e foram celebrados como no poema “Ó Sino da minha aldeia” de Fernando Pessoa.
Ó sino da minha aldeia,[1]
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
(s. d.)
Mas o que motivou este escrito é que nesta minha aldeia da Lomba da Maia (chame-lhe freguesia senhor, aqui não chamamos aldeias, são freguesias, senhor) os sinos emudeceram esta semana, e uma armação de madeira segura um deles e deixaram todos de tocar. Não sei qual o motivo mas sinto a falta dos seus toques que ritmicamente me acompanhavam ao longo do dia entre as sete da manhã e as dez da noite. Era uma espécie de noticiário da aldeia, e hoje não passa de uma metáfora de tempos idos. Volta sino que me fazes falta pois é ao teu ritmo que escrevo e leio
Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713 [Australian Journalists' Association MEAA]
Diário dos Açores (desde 2018) Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)
[1] Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).
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