Chrys Chrystello

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Os Três círculos – Revisitando Macau

CRÓNICA 369 OS TRÊS CÍRCULOS – REVISITANDO MACAU E UM AUTOR AÇORIANO ESQUECIDO LEAL DE CARVALHO

A vida em Macau era à época em que lá vivi (1976-82), um cadinho de povos e culturas, exemplo de miscigenação e liberdade num Oriente exótico, sedutor, mas problemático. Resumia-se a três círculos excêntricos que se tocavam no infinito. Desses, o médio interior era constituído pelos macaenses, força sem identidade nacional (arreigados à herança cultural lusófona falando e lendo fluentemente a língua de Camões, os mais cosmopolitas falavam chinês e inglês, e outro segmento nas bordas linguísticas do cantonense). Leal de Carvalho escreve

«a cidade que no passado recente abrigou russos brancos, chineses, indonésios, vietnamitas, filipinos e portugueses perseguidos pelos credores ou por mulheres ciumentas, e alguns, poucos, pelas ideias políticas. Um porto de abrigo para gente de mundos vários que aqui vieram por desvairadas razões: espírito de aventura e ambição pelo lucro fácil, refúgio às convulsões político-sociais da região e à loucura da guerra que lançara o mundo em fogo, evasão a problemas sociais ou familiares ou inútil fuga aos demónios próprios de cada um» (in Leal de Carvalho, Requiem para Irina Ostrakoff p. 5). A construção desta identidade fora «instalada, na educação das classes superiores da sociedade macaense, como processo de autonomização à imensa mole demográfica circundante que, pela força dos números, os ameaçava submergir» (in Leal de Carvalho, Ao Serviço de Sua Majestade, p. 377).

O autor fala ainda do convívio interracial que tinha reflexos na moral e nos valores da comunidade:

 «A moral social local, da comunidade macaense e mais da chinesa, consentia a liberal sofisticação de costumes, manifestação viva da interpenetração dos valores culturais da região… fruto da emigração de lindas mulheres, que confundiam os olhares dos latinos, sobretudo as de Xangai. Alguns dos costumes orientais eram bem sedutores para os machos lusos, que lamentavam o facto de as «sucessivas Administrações Portuguesas não terem sabido aproveitar a lição de quatrocentos anos de contacto com a milenária cultura chinesa, mais antiga, sábia, realista, que admitia, na harmoniosa estrutura familiar e sob o austero Império da Primeira Esposa, um número indeterminado de concubinas e até “bichas,” solução cómoda e prática», diz o autor com não disfarçada ironia.» (in Leal de Carvalho in Os construtores do Império, p. 137)

Depois, havia um círculo menor, exterior, constituído pelos portugueses. Durante séculos, esse grupo era exclusivamente constituído pelos que iam e vinham com cada equipa governamental a que se acrescentava, aqui e ali, o elemento desgarrado que fora para a tropa ou para a polícia e por lá ficara, constituindo família e deixando-se miscigenar e assimilar pelos costumes locais. Havia adstritos a estes os estrangeiros que se deixaram encantar por Macau, aprendendo as línguas e costumes locais e acabando integrados na família lusófona, como é amplamente descrito na obra literária do atrás citado juiz açoriano Rodrigo Leal de Carvalho que ali viveu 40 anos entre 1959 e 1999.

Por último, um enorme círculo, exterior a tudo, com motor próprio na economia, constituído pelos chineses, liderados pela pequena elite, dependente de Pequim aonde viajavam frequentemente, a fim de receberem instruções e contarem os desvarios do delegado português encarregue nominalmente de governar. Decidiam como, porquê, onde e quando. Davam a entender ao governo português a insatisfação quando a administração exorbitava ou tinha uma “ideia brilhante” sem os consultar. Sempre mandaram no território e determinavam como os súbditos que representavam mais de 96% da população se comportariam. A clique que geria a “Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, Não Há Outra Mais Leal” ocultava o facto de descender dos mandarins chineses que, após a Revolução Cultural, determinava o que se podia ou não fazer em Macau.

Voltemos aos aspetos culturais.

Não esqueçamos que para as comunidades chinesas, a mulher que namorasse um kwai-lo estava um escalão acima da mera prostituta. Mesmo que casasse ficava o estigma de que havia algo de errado com elas. Os pais da jovem podem nem mostrar insatisfação, mas o conceito é preponderante no meio social e refletido na linguagem, a todos os níveis. A família, altamente hierarquizada, é tradicionalmente dominada pelo macho. A mulher que se case com o kwai-lo, e o marido, estão abaixo da escala social e da estima dos parentes. Tecnicamente, deixou de pertencer à família e passou à dele, perdendo os laços consanguíneos. O mesmo sucede com os filhos que não farão parte do seio social e cultural da família de onde descendem. No caso da mulher casada com um não-chinês, ela está apenas um degrau acima do nível da prostituta, de facto, nem sequer é considerada como se se tivesse juntado a outra família, do marido. Para os chineses, os brancos não têm laços de família, além de que se divorciam por dá cá aquela palha, pelo que ora, a filha da família chinesa é um risco maior do que quando vivia em casa. A mulher tem menos valor na sociedade chinesa do que o homem e todos querem ter um filho e não uma filha, onde se manteve a regra do filho único (a lei do filho único (preferencialmente varão) foi mantida até novembro de 2015 data em que passou a ser permitido terem dois filhos ). Se a sogra chinesa tratar o genro como um ser humano isso só prova a sua amabilidade, ao evitar mostrar ao estúpido estrangeiro quanta raiva lhe vai na alma por ter casado com a filha. Obviamente que se o incluírem numa festividade ou celebração será um privilégio, tal como dar boleia aos que precisam…a sogra chinesa jamais entenderá a injusta e má sorte de ter um branco para genro.

O campo matrimonial na família é da mais alta responsabilidade e critério dos pais, sendo conhecidos casos de deserdados por não casarem com as escolhidas. Essa falta de obediência será a culpa a acarretar pelos filhos que os tornará responsáveis por quantas mortes ocorram, e problemas de saúde dos pais e parentes. Este tipo de normas repercute-se nos países de destino das famílias emigradas e representa a arreigada preservação das normas rurais das zonas de origem.

Nos países de acolhimento (como vi na Austrália) falam (por ex.º) Taishanês em vez de Cantonense pois Toisaan (Toishan - Taishan cidade no Delta do Rio das Pérolas, perto de Macau, pertence a Jiangmen (140 km W de Hong Kong), parte de um arquipélago de 95 ilhas incluindo a maior, Shangchuan Island (S. João) é o lar e a Austrália apenas um país estrangeiro que os circunda.

Lembrava-me que mesmo que lesse e falasse cantonês fluentemente - o que nunca foi o meu caso - jamais seria considerado como “um deles.” Sempre me limitei a ver, de fora para dentro, a sociedade que me rodeava, tentando não fazer juízos de valor antes me limitando a apreender o máximo. Nunca namorei - formal ou informalmente - uma chinesa e sabia que tal me estaria vedado ab initio. Nem todas estas caraterísticas se impuseram como norma nas famílias macaenses, mas, a mero título de curiosidade, posso confirmar que se telefonasse para uma macaense, cujos pais não conhecesse, seria submetido ao interrogatório de uma mãe tipicamente chinesa:

Quem sou? Como conheci a filha dela? De onde era a minha família?

Se era casado? Se os meus pais eram proprietários ou se trabalhavam?

Qual a profissão do meu pai? O que estudava (se andava a estudar)? Ou em que trabalhava (se andava a trabalhar)?

Porque é que tinha a ousadia de lhe telefonar para casa…”

E por aí adiante, num chorrilho de perguntas sem tempo para réplica, previamente desnecessária, as respostas nunca seriam satisfatórias porque eu seria sempre um kwai-lo. É neste imbróglio de agendas separadas que ali aterro em 1976, sem saber nada disto, além de escassos ensinamentos sobre a ancestral cultura clássica chinesa. As preocupações, à época, não me levavam a interessar pela sociologia ou linguística (a que me viria a dedicar depois de 1984). Achava curiosa a existência do patuá similar ao de Malaca, crioulo centenário, sobrevivente a tudo e todos com escassos falantes. A atração natural pela mulher oriental sobrelevava quaisquer outros interesses, a vontade de descobrir novos mundos em corpos de pele sedosa sensual, no prazer hedonista conquistaram-me enquanto jovem. Os olhos raramente se desviavam das cabaias de seda ou Cheong-sam, justíssimas, de cores vivas e refulgentes e grandes aberturas laterais até ao cimo da alva coxa, bem torneada, a deixar antever mistérios por decifrar e paraísos por descobrir.  A queda inevitável pelas belezas asiáticas, bem como a flexibilidade dos costumes sexuais funcionam como forte motivação para a aceitação de alguns dos costumes do Outro…

Cito Leal de Carvalho:

«A interpenetração dos valores culturais das múltiplas comunidades locais, a flexibilidade dos códigos morais ou sociais do Oriente, a influência no meio macaísta dos usos e costumes chineses que instituíra na Colónia o concubinato com o reconhecimento social e legal, o contacto frequente com a sexualidade liberal dos aventureiros de outros mundos e etnias… O temperamento fácil das gentes do Sueste Asiático, as noites quentes e sensuais dos Trópicos tinham adoçado a rigidez de fachada vitoriana e marialva, da moral sexual de importação lusíada e conferido à sociedade macaísta, uma tolerância e sofisticação que comportava. Admissibilidade de pequenas infrações sexuais, aventuras pré-maritais com ou sem sequência matrimonial, recatados adultérios» (in O Senhor Conde, p. 214).

«Devia a mulher ser sempre «nova, esguia, bem torneada, na cabaia muito justa e brilhante, colarinho duro e alto, e grandes aberturas laterais até meia-coxa» (op. cit. p. 52)…

«Outros homens sentiam o mesmo fascínio por aquelas mulheres. É que, elas dançavam bem, estavam perfumadas, tinham «peles perfeitas e corpos esculturais, de feições enigmáticas, escondendo sabe-se lá que emoções ou sentimentos» (p. 53)...

   

«É ressaltada a beleza serena e um tanto enigmática da mulher oriental, a sua sensualidade e a suavidade da pele:… «as senhoras chinesas tinham uma complexion de pétala de rosa» (in Ao Serviço de Sua Majestade p. 602) caraterística que as macaenses herdariam. Ou «a resignação ancestral da mulher oriental, habituada à natureza traiçoeira dos homens em geral e dos europeus em particular» (Ao Serviço de Sua Majestade: 323).

Fizeram-se muitos casamentos com reinóis, donde provieram os macaenses. Estas macaenses acabaram por assumir lugar de destaque na sociedade local. Tudo isto (aqui magistralmente descrito pelo juiz açoriano e compilado pela Anabela Mimoso no 15º colóquio) servia de pano de fundo a emoções, paixões e desenfreamentos que assolavam os jovens ocidentais e a mim em particular.

Tentar à distância de décadas reviver sentimentos e outras sonoridades íntimas do ser humano é doloroso e pode carecer de fidelidade. Surgem sempre enevoadas memórias mais róseas do que talvez, na época, fossem. Os elementos negativos da solidão, do afastamento do lar familiar habitual, da necessidade de conjugar novos verbos, novas famílias, novos sentimentos e emoções sobrepunham-se então à mera excitação pelas descobertas que preenchiam dias e noites. Era um ocidental em busca de equilíbrio e de identidade, tal como os macaenses em ambiente estranho e hostil. Muitas forças contraditórias me impeliam e travavam. Tal como Kung-Fu-Tzu (Confúcio), entre as minhas preocupações estavam a moral, a política, a pedagogia e a religião, por esta ordem. O valor dado ao estudo, à disciplina, à ordem, à consciência política e ao trabalho são lemas que o confucionismo impôs à civilização chinesa da antiguidade e que se mantêm hoje. Não são uma religião, nem um credo estabelecido, mas apenas determinações rituais de caráter social, que permitem a liberdade de crença em qualquer sistema metafísico ou religioso que não vá contra as regras de respeito mútuo e etiqueta pessoal. Curiosamente, este paralelismo entre os valores confucionistas e os meus, deixaram aberta uma via de compreensão. À época faltavam-me muitos anos para entender, na globalidade, o verdadeiro significado do dito confucionista “Mesmo nas situações mais pobres uma pessoa que vive corretamente será feliz. Coisas mal adquiridas nunca trarão felicidade” que se tornaria no meu arquétipo após os quarenta e cinco anos.

 

Chrys Chrystello, Jornalista,

Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association] MEEA]

[Diário dos Açores (desde 2018)

Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e

Tribuna das Ilhas (desde 2019)]

 


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