Alexandre Parafita
Para cá do Marão (já não) mandam os que cá estão
Nasci e cresci no mesmo chão de Torga – o “reino maravilhoso”, como lhe chamou. Fiz os mesmos trilhos do poeta, entre vinhedos e penedos, e, como ele, sempre com aquela voz megalítica, respeitosa, a soar alto: “Para cá do Marão, mandam os que cá estão!” Uma velha máxima que, diz a lenda, vem dos tempos da Inquisição, associada à ousadia de um clérigo transmontano, que com tais palavras afrontou os inquisidores de Coimbra, quando vinham indagar sobre a origem de um rapaz humilde, cristão-novo, e impedi-lo de casar com uma paroquiana “pura” para que os “sangues” se não misturassem.
Dentro da lenda, ou não (que as lendas, bem se sabe, trazem sempre um fiozinho de fantasia…), o certo é que a velha máxima perdurou como metáfora da altivez deste povo. E perdurou, pelo menos até há três ou quatro décadas atrás, quando alguns corajosos autarcas encostavam às cordas governantes impreparados, sempre que, de Lisboa, vinham com decisões absurdas ou imprudentes.
Dificilmente hoje já haverá quem evoque este dito antigo. Veja-se a indiferença com que os governantes encaram os apelos, petições e manifestações que se erguem contra as suas mais disparatadas decisões. Viu-se tal perante as vozes revoltadas de populações e ecologistas contra o avanço da barragem do Vale do Tua, que engoliu um dos mais belos paraísos de biodiversidade. E está a ver-se agora com a malfadada exploração de lítio nas terras do Barroso. As populações gritam de medo face à ameaça da poluição do ar, da água, dos solos, das hortas, lameiros e pastos, que tornarão a vida insuportável. E apesar disso, a exploração está pronta para avançar, dizem as notícias. Quem hoje manda é um estado centralista e, por cá, um pequeno cortejo de gente mansa, acomodada, que lhe obedece.
in JN, 5-2-2020