Ana Soares
Para José Cid, de uma transmontana medonha
José Cid,
Desculpe tratá-lo pelo nome, mas palavras como "Caro", "Exmo." e "Senhor" têm - para mim - uma conotação de algum respeito e, como compreenderá, não me sinto capaz de as utilizar consigo. É que nós, transmontanos, se há característica que temos é honestidade e franqueza de carácter. Espero que isso não o incomode também.
Certamente não me conhece e eu, depois de ontem, dou Graças a Deus por não ter tido o infortúnio de algum dia falar consigo. Permita-me brevemente que me apresente: sou apenas uma orgulhosa transmontana, com dentes, que há quem diga que não sou assim tão feia, que conhece o mar e que - nesta parte tem toda a razão - sou medonha. E sabe quando sou particularmente medonha? Quando assisto a verdadeiros atentados de idiotice por parte de pessoas a quem é dado tempo de antena na televisão. Como foi o seu caso.
Eu sei que provavelmente, como a grande maioria dos transmontanos, não sou abrangida pelo seu conceito de pessoa evoluida porque nunca pousei semi-nua para a capa de um CD. Percebo isso e será provavelmente uma falha grave no meu curriculo. Mas já que é tão apreciador de rotular pessoas de feias e bonitas, permita-me o conselho de se recordar sempre desta imagem que todos (infelizmente) temos de si, antes de chamar a alguém feio. É que é medonho. Isso sim, simplesmente medonho...
Por outro lado, "essas pessoas do Portugal profundo (que) já deviam ter evoluido" são certamente, em parte, responsáveis pela sua carreira. Sim, eu sei que neste momento já muitas delas o lamentam profundamente, mas o que lá vai, lá vai. A verdade é que - se calhar - as pessoas que fazem "excursões (...) que nunca viram o mar para o Pavilhão Atlântico" já as fizeram também para o ver, até porque nós, transmontanos, temos assim momentos de loucura, veja lá... Até de assistir aos seus concertos. Mas essas pessoas transmontanas que nunca viram o mar - porque as há e em nada nos envergonham - são - como as outras que já viram o mar - pessoas honestas, trabalhadoras e que o transformaram no que é hoje: a suposta "Mãe" do rock português. E se o nosso povo (o português, onde nós nos incluimos) diz que a "A Homem agradecido, todo o bem é devido" bem fácil será concluir de que quem o não é...
Por outro lado, não sei quem o nomeou embaixador da "música popular portuguesa fantástica", mas sabe que há na música, como em muitas outras àreas, transmontanos de renome e reconhecimento internacional, ainda que não contem com o seu. Imagino que hoje estejam muito preocupados por receberem reconhecimento de tão altas instâncias mas por o José não os considerar pessoas evoluídas. Ou então não...
E era isto que eu gostava de lhe dizer, e não mais, porque a verdade é que não merece que nós estejamos tão revoltados com as palavras que proferiu e que mais não são do que sinónimo do seu desconhecimento de Portugal e dos portugueses. Resumindo, do seu apego a estereótipos ultrapassados e arcaicos (aqueles que teria interesse em ser o primeiro a criticar, digo eu) - esses sim - prova de não evolução!
Mas sabe, não defendo a construção de uma muralha da China à volta de sua casa. Primeiro porque tenho (mais um) terrível defeito de saber um pouco de História Mundial e de, portanto, não me ficar por trocadilhos populistas e brejeiros. E depois porque é necessário - de vez em quando - que estale o verniz e saibamos o que sentem verdadeiramente as pessoas. E o José foi particularmente esclarecedor.
E agradeço muito o pedido de desculpas hoje na televisão, mas em nada muda o que disse. E quem não se sente não é filho de boa gente. E de boa região, acrescento eu!
Mas também não se preocupe muito com isso. Afinal sou apenas mais uma transmontana que catalogou como pessoa feia, medonha, desdentada e que não é Portugal. E sabe que mais? Todos os dias agradeço por isso!