Clara Alves

Clara Alves

Passaram 51 anos sobre o dia em que Portugal acordou livre.

Passaram 51 anos sobre o dia em que Portugal acordou livre.

Cinquenta e um anos desde que a madrugada deixou de ser apenas escura e passou a ser símbolo de recomeço.

Mas o que celebramos hoje é mais do que uma data.

É um legado.

É uma promessa que se renova.

É o compromisso de não deixar que a madrugada se apague.

Sofia de Mello Breyner escreveu:

"O dia inicial, inteiro e limpo,

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo."

Abril foi exatamente isso: um romper de silêncio, uma entrada na luz.

Quando penso no que foi o 25 de Abril em Alfândega da Fé, imagino o silêncio. Não o silêncio da paz, mas o da ausência de liberdade.

Aqui, onde as notícias demoravam a chegar e os ventos da mudança ainda encontravam montanhas por ultrapassar, vivia-se uma outra forma de ditadura — aquela que se sentia no medo de falar, no conformismo forçado, na resignação do quotidiano.

Alfândega da Fé era, como tantas terras do interior, um lugar longínquo.

Longe do Terreiro do Paço e das praças onde os cravos floresceram. Mas aqui também se suspirava por liberdade. Aqui também se sonhava com o direito de escolher, de dizer, de participar.

Penso na minha avó. Mulher, professora, mãe de 6 filhos biológicos e 2 adotivos. Numa sala fria, de janelas altas, onde ensinar era resistir; e cuidar era revolucionar. Numa época em que as perguntas não eram bem-vindas, e em que o futuro parecia um caminho estreito e fechado, sobretudo para as raparigas.

Hoje, temos escolas onde se debate, onde se aprende a liberdade, onde se sonha com mundos maiores. Onde as raparigas e os rapazes crescem com direitos iguais, com o direito de escolher quem querem ser. Onde há horizontes maiores e oportunidades que, antes, nem se ousava sonhar.

É aí que vive Abril. Não apenas nos discursos, mas na prática. No dia-a-dia. No gesto de cada professora, de cada aluno, de cada mulher que ousa sonhar mais longe. Isso é “habitar a substância do tempo” com liberdade.

E penso no papel das mulheres.

Na minha avó e em tantas outras que viveram décadas sem direito ao voto, à escolha, à palavra pública. Mulheres que educaram e cuidaram, mas sem nunca poderem decidir.

Hoje temos mulheres nas câmaras, nas assembleias, nos governos, nas empresas — com voz e com poder.

E isso também é Abril. Devolver espaço e palavra a quem sempre teve coragem, mas nem sempre teve lugar.

Mas Abril também nos lembra que não basta ter assento — é preciso ter impacto. É preciso garantir que nenhuma mulher volta a ser silenciada, que nenhuma jovem cresce com menos oportunidades só por ser mulher. Que os direitos conquistados não são reversíveis.

E penso em nós, os mais jovens. Aqueles que já nasceram em democracia, como eu. A quem, por vezes, parece que a liberdade é um bem garantido, um dado adquirido.

Mas não é. A liberdade é uma construção. E é frágil. Pode perder-se. Aos poucos. Pelo desinteresse. Pela apatia. Pelo ruído que substitui a ação.

Não me resigno a essa ideia. A democracia é uma casa que se habita, mas também se protege. É o direito de escolher, sim — mas também o dever de participar.

O 25 de Abril não foi um ponto final. Foi um começo. Mas não caminhou sozinho. A democracia que hoje conhecemos consolidou-se também com o 25 de Novembro, que garantiu que a liberdade não se faria à custa da liberdade dos outros ou de radicalismos. Que a pluralidade é o coração da democracia. Que viver em liberdade é, sobretudo, saber respeitar.

Abril só é inteiro quando cabe toda a gente.

Por isso, sim:

Celebrar o 25 de Abril é isso mesmo: um compromisso. É olhar para o país — e para Alfândega da Fé — e perguntar:

Que portas ainda estão por abrir?

Que vozes ainda precisam de espaço?

Que sonhos ainda esperam por tempo?

Não me resigno à ideia de que já está tudo feito. Porque não está.

Falo-vos como jovem, como mulher, como cidadã.

E como alguém que teve o privilégio de dar voz a esta terra onde quer que esteve.

A nossa conexão com a terra e com as pessoas não se mede pelos títulos, mas pelos gestos, pela dedicação, pela forma como continuamos a zelar por aquilo que nos é querido.

Porque há laços que não se desfazem, e há lugares que, por mais que a vida nos conduza, nunca nos deixam ir.

Por isso, não me resigno à ideia de que Abril pertence ao passado. Porque Abril é todos os dias.

Abril não tem donos.

Abril é de quem o vive. De quem o constrói. É de quem levanta a voz, mesmo quando parece que ninguém ouve. De quem o defende.

Por isso, hoje, ao celebrarmos os 51 anos do 25 de Abril, não erguemos apenas a memória.

Erguemos um dever.

O dever de manter viva a chama da liberdade, de proteger a democracia com palavras, com actos, com escolhas.

De fazer da política um lugar de serviço e não de vaidade.

De olhar para as nossas terras e saber que o futuro também se planta aqui.

Porque não basta dizer que somos livres — é preciso garantir que todos o são.

Porque não basta lembrar Abril — é preciso continuá-lo.

E se é verdade que os cravos floresceram primeiro noutras praças, também é verdade que em Alfândega da Fé, como em tantas terras esquecidas, há gente que nunca deixou de semear Abril.

E é por essa gente que continuamos.

Porque não nos resignamos.

Porque não desistimos.

Porque estamos cá — para garantir que Abril se continua a cumprir.

Sempre.

Aqui.

Com cada um e com todos os que fazem caminho.

Viva a Liberdade.  Viva Democracia.

Clara de Sousa Alves


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