Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

Património, impostos e desigualdade

Conjuguem-se os motivos de alarmismo espalhados aos quatro ventos por uma direita que faz sempre vista grossa sobre o estado social do país e teremos uma visão mais próxima da nossa realidade.
Primeiro: Os números indicam que Portugal continua a ser um dos países mais desiguais da Europa e a situação agravou-se entre 2010 e 2014. Isto é fatalismo, é praga ditada por um qualquer Deus perverso que não gosta dos portugueses, sobretudo que não gosta dos pobres?
Segundo: Independentemente do que venha a ser (se vier a ser) a tributação complementar dos grandes patrimónios imobiliários, é um escândalo pensar que se possam tributar patrimónios acima de 500.000 euros (Mortágua dixit) ou de um milhão de euros (Jerónimo admitiu)?
O meu problema não é que se tributem estes patrimónios. O meu problema é que se considere, por exemplo, um património de um milhão de euros como coisa banal de classe média. Onde está, afinal, a classe média em Portugal? Lembro apenas que, na opulenta Suíça, o património médio anda num valor muito próximo de meio milhão de euros, muito acima de qualquer outro país europeu. Conheço a realidade próxima de quem sempre ganhou acima da média e que, ao fim de 48 anos de trabalho, impostos e descontos para os sistemas sociais, educação dos filhos e férias modestas chega ao fim da carreira com um património bem menor. Esta é a classe média que conheço, à que considero pertencer, e que não faz queixinhas sobre os impostos, até porque conheço outras realidades fiscais bem mais duras. Onde está então o princípio de que os impostos devem ser pagos segundo a capacidade contributiva?
Terceiro: A possibilidade de aceder a contas bancárias para fiscalizar a situação fiscal dos cidadãos será assim uma intrusão tão grande na vida dos cidadãos? Quando atentamos nas informações cruzadas que levam a dever explicar uma transferência de 10 000 euros (a pretexto do branqueamento de capitais), quando, para entrarmos num avião, temos de consentir na devassa de dados de natureza pessoal que são depois explorados por vários Estados e entidades, quando num processo de execução só nos apercebemos de uma penhora de títulos quando nos aparece uma informação da respetiva venda sem termos dado a respetiva ordem, quando num mês recebemos dezenas de chamadas de entidades a quem nunca fornecemos o número do telefone, enfim, numa sociedade em que tudo é espiado, transacionado, publicado, onde está o escândalo do acesso (justificado) às contas bancárias que indiciem fuga aos impostos?
O povo diz que quem não deve não teme. Entre os 20% dos portugueses que vivem abaixo do limiar de pobreza e a reduzida percentagem dos que têm um património acima de um milhão de euros (ou até de meio milhão) há uma diferença de tratamento que penaliza não os do topo da escala social, mas os da base. E é este o escândalo que qualquer português de boa fé devia estar empenhado em reduzir; é esta fratura que faz de nós um péssimo exemplo de sociedade; é este retrato que os mais abastados deveriam pendurar nas salas de jantar para meditarem sobre o sentido de alguns comportamentos e que alguns políticos deveriam colocar como epígrafe em qualquer programa de governo.


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