Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

Política nacional: conversa de surdos

Estamos no meio do período oficial da campanha eleitoral para as eleições autárquicas e o menos que se pode dizer é que a campanha é tudo menos esclarecedora. Há várias razões para a confusão dos discursos, o desvio das estratégias partidárias e as tendências da comunicação social.
Antes de mais, estas eleições ocorrem no meio da tormenta sem precedentes provocada pelo resgate da economia portuguesa e a consequente tutela de três entidades externas, que se decidiu designar por Troika. As consequências do programa imposto, que o governo tem seguido com enorme sentido de obediência e igual insensatez política, têm produzido efeitos devastadores a nível social e não melhoraram os indicadores que foram a causa da intervenção externa, a saber, o défice público e a dívida pública.

Em segundo lugar, houve modificações legais recentes, quer no quadro autárquico quer na limitação do mandato de certos cargos. Se a fusão de freguesias diminuiu o número de autarcas a eleger, não contentou todas as comunidades, fortemente ligadas a identidades locais próprias e a algumas animosidades entre vizinhos. Por outro lado, a limitação dos mandatos de presidentes de câmara e de junta de freguesia, objecto de monumental controvérsia e de decisões judiciais contraditórias até às decisões do Tribunal Constitucional, deu origem a jogos de poder entre notáveis dos partidos, optando uns por se candidatar a municípios diferentes e decidindo outros, com algum desencanto e igual dose de oportunismo, desligar-se dos Partidos que os marginalizaram para lhes disputar o eleitorado na qualidade de independentes.

Acresce a tudo isto a disciplina imposta pela Comissão Nacional de Eleições a alguma comunicação social, no sentido de dever tratar igualmente todas as candidaturas, o que, no entender desta, ofende os critérios jornalísticos.

Podemos afirmar que estes três temas têm ocupado mais espaço de debate do que a discussão do mérito das candidaturas e dos seus programas ou das estratégias necessárias para desenvolver a acção autárquica de modo a fomentar o progresso das populações. Mas a agitação política é visível, os dirigentes nacionais vêm a terreiro tirar as castanhas do lume e dar umas palmadinhas nas costas aos candidatos locais, que serão mais tarde chamados a molhar a camisa pelos queridos líderes nas eleições nacionais.

Assim sendo, dir-se-ia que a campanha decorre como as anteriores, pontuando nos telejornais as provocações de uns e as respostas dos adversários, os argumentos de quem governa contra os argumentos de quem pretende governar. O problema é que, mergulhado na crise, o país não vê nem ouve discutir verdadeiras alternativas, pois as verdadeiras alternativas, aquelas que consistem em o povo escolher conscientemente o seu destino, não estão na discussão pública ou são silenciadas pelos media, por serem alegadamente irrealistas ou pouco atraentes do ponto de vista (“jornalístico”).

Esta dicotomia entre governantes ou pretendentes a governantes de formação liberal e as populações, agarradas ao contrato social expresso na Constituição, tem provocado uma autêntica guerra institucional, que já deixou a linguagem politicamente correcta para assumir posições de aberto confronto e rebeldia.

Quem governa em Portugal - e noutros países- já não são os representantes do povo, pois estes passaram a ser os representantes dum sistema global de governo liberal e elitista, para o qual os sistemas jurídicos nacionais, as culturas nacionais e os sistemas sociais são velharias a atirar para o lixo da história. Tudo o que seja contrariar a selvajaria do mercado global e a rápida acumulação de capital deve ser reformado, em nome de um pretenso modernismo que nos aproxima dos sistemas esclavagistas.

É por isso que o governo, quando proclama como virtude sua o cumprimento das obrigações para com os credores e o desejo de regresso aos mercados, está simplesmente a seguir a cartilha do governo global dos mercados, desprezando sobranceiramente o contrato com o povo que o elegeu.

A forma como relativiza as leis fundamentais e as decisões dos tribunais obedece a uma estratégia de confronto mais ou menos aceso, protagonizado até pelo ministro Poiares Maduro, quando sugeria que o Tribunal Constitucional devia interpretar a Constituição com bom senso, entendendo naturalmente que o bom senso seria fechar os olhos às tropelias do governo. Experiente como é em matéria de direitos, não seguiu a corajosa posição de uma sua ex-colega no Tribunal de Justiça da União Europeia, a advogada-geral Sharpston, a qual, num processo bem menos significativo em matéria de decisões administrativas ilegais a pretexto de necessidade de segurança, defendeu que:
(“Argumentos semelhantes são apresentados de forma não pouco frequente em tempos difíceis, para justificar o afastamento do princípio do Estado de direito – independentemente de isso ser feito mediante a suspensão de garantias de direitos fundamentais, a restrição da fiscalização jurisdicional ou a atenuação das consequências de tal fiscalização. Esses argumentos não têm lugar numa União Europeia regida pelos princípios do Estado de direito e cujo Tribunal tem a obrigação, nos termos do Tratado, de garantir «o respeito do direito»)

O pretexto das dificuldades financeiras e a chantagem com a ameaça de não poder pagar salários, comuns no discurso do governo e dos economistas institucionais e obedientes, leva-os a denunciar como obstáculo os princípios da legalidade em que assenta a sua própria legitimidade. Este governo ameaça, por isso, a ordem social nacional e a soberania do povo e colocou-se decisiva e arrogantemente numa posição de confronto com os órgãos do Estado que têm o dever de as proteger.

É nesta alternativa de estratégias que o povo - e só ele- tem de escolher: ou submeter-se, como aluno obediente, a um governo global anónimo para quem os problemas sociais são trocos de grandes negócios ou acordar da letargia das obediências a uma elite traidora e pronunciar-se pela sua sobrevivência em dignidade como povo. Esta segunda alternativa é dolorosa, implicará sacrifícios e renúncias, mas é este o preço da dignidade nacional.


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