Manuel Igreja

Manuel Igreja

Praxem bem

Brinca é uma coisa muito séria. Galhofar criando situações piadéticas sem que se caia no ridículo ou sem que se humilhe quem nos rodeia, será por sua vez algo que não está ao alcance de qualquer um. Nesta coisa do humor e da diversão, ou se tem cuidado e se consegue colocar na acção o mínimo de inteligência, ou logo se resvala perigosamente para o reino do grotesco através da porta da alarvidade tantas vezes escancarada pela impiedade.

Não se pense pois então que brincar seja ao for é para qualquer um e para ser mostrado e concretizado a toda a hora. Muito mais, quando o divertimento interfere com terceiros e com mais as suas circunstâncias. Diz-nos o bom senso que à medida que a nossa fragilidade aumenta, cresce a nossa necessidade de compreensão.

Como não haverá maior fragilidade que a que advém do sentimento de isolamento quando damos por nós no meio de uma multidão, nada melhor pois que alguma calma no jogo.

Por isso é que não sendo necessariamente contra as famigeradas praxes universitárias enquanto acolhimento dos novos colegas, de modo algum posso aplaudir os quadros tristes que anualmente alguns figurões travestidos de negro por via dos trajes académicos pintam com todo o despudor e com todo o primarismo.

Com a desculpa de que certos rituais são essenciais para a integração dos novatos, deixam vir ao de cima vis instintos e reduzem a rodilhas rapazes e raparigas da sua idade, perante quem se julgam superiores unicamente porque nasceram um ano ou dois mais cedo e se lhes adiantaram no ingresso no ensino superior.

Esquecendo-se que podem e devem brincar sem magoar moral e fisicamente quem lhes cai na mão, tornam-se rasteiros e humilham, em cenas de momentâneos orgasmos mentais e falsas noções de autoridade vindas vá lá saber-se de onde.

Por estes dias que correm, o país que somos reage a novo estampido. Doutos senhores debruçam-se sobre a profunda questão das praxes académicas. Dividem-se opiniões, esgrimem-se razões a favor e contra, perde-se tempo, empata-se para encher espaço noticioso, mas mal haja novo estrondo no sinal televiso, logo se esquece. O povo no circo já virou a cabeça para o outro lado. O assunto já foi, outro já nasceu para logo morrer.
Quanto a mim, a questão das praxes académicas, não se fica por elas próprias, nem pelo facto de se praticarem ou não. Levam-se a efeito desde que há estudantes e hão-de continuar levar-se quer os guardiões dos templos queiram ou não. Como ia a dizer, o problema não é esse.

As cenas escabrosas e por vezes criminosas que levaram à praça pública semelhante assunto, devem-se acima de tudo à falta de preparação cívica, cultural e mental de certos indivíduos momentaneamente elevados à categoria de pequenos deuses no Olimpo de divindades menores em que por culpa colectiva se tornou a nossa comunidade.

Não fosse assim, houvesse chá em suficiência na altura das fraldas e dos pequenos tabefes quando os ralhos não chegam, e haveríamos de ver por aí todos os anos pelas praxes, muito coisa de nos fazer sorrir. Brincar-se-ia por parte de quem estando já inserido lhe compete o puxar pela gozação, e brincar-se-ia igualmente por parte de quem é chegado a um mundo novo e nele quer ser reconhecido e integrado.

O problema é que falta muita coisa daquela que se não pode comprar na mercearia nem que esta esteja num centro comercial grande e moderno. Falta-nos enquanto sociedade, cada vez mais a educação que vai para além do que se decora dos livros para se fazer a figura necessária nas pautas de classificação. Escasseia-nos cada vez mais a noção da fronteira entre o que é certo e o que é errado. Temos cada vez menos presente a ideia de que o nosso limite acaba onde se inicia o limite do outro. Isto já nem falando na presença da dignidade, pois tendemos a ver esta no penteado ostentado pelo nosso semelhante.

Por isso é que a brincadeira tem que se lhe diga. Garantidamente saber brincar tem bem mais que se lhe diga do que saber-se ser-se macambúzio. A estes, basta-lhes estar a um canto para não incomodarem os danados para a brincadeira. Só se notam quando nos dizem que foi a brincar a brincar que o diabo…. Pois, mas quanto às praxes, mais não posso do que dizer que primeiro cresçam, e depois praxem bem.


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