Chrys Chrystello
Quando as palavras se acabaram
Crónica 159 , acabaram as palavras (quem não respeita a memória dos seus autores perde a sua identidade)
A inquietude persegue-me desde que deixei a Europa em 1973 e me abri ao conhecimento universal e multicultural. Adquiri uma errância mais própria de nómadas ciganos do que das origens sedentárias de marrano galaico-português. Esta inconstância assola-me ainda mais desde que me arquipelizei nos Açores há mais de on seis anos. Sou conhecido pela infidelidade no amor às ilhas que habito. De cada vez que saio da Ilha verde - e visito ou conheço nova ilha – enamoro-me loucamente como um jovem adolescente de sangue quente em busca de paixões avassaladoras como são os amores da juventude. Só posso viver numa mas em todas quero estar em simultâneo, pois nelas me sinto em casa.
Como pode uma pessoa vinda de outras culturas e continentes entender estas ilhas e suas idiossincrasias?
A partir de 2006 comecei a traduzir autores açorianos e publiquei dois volumes da "CHRÓNICAÇORES: uma Circum-navegação, De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores, " cronicando as minhas viagens em volta do mundo.
Organizo desde 2001 os Colóquios Anuais da Lusofonia e sou atualmente o Editor dos Cadernos (De Estudos) Açorianos, que divulgam obras de autores açorianos e livremente acessíveis em linha (http://www.lusofonias.net/cadernos-suplementos-videohomenagens-bibliogra...).
Como se pode optar por ficar aqui nestas ilhas e descurar todos os mundos que existem para lá deste arquipélago? É simples, uma pessoa fica ilhanizada como Almeida Firmino em A Narcose, como se os outros mundos não tivessem importância a não ser para divulgar o segredo da existência de uma importante literatura de cariz açoriano. É preciso viajar entre estas nove filhas de Zeus e entender os maroiços do Pico ao sabor do seu Verdelho, calcorrear o Barreiro da Faneca, pisar as areias esbranquiçadas de Porto Pim, meditar em frente ao ilhéu do Topo, extasiar-se no Caldeirão do Corvo e deleitar-se com as águas que em cascata pontilham as Flores... É essencial partir à descoberta de cada ilha, sonhando com Dias de Melo nas agruras e na fome dos baleeiros, reler o Mau Tempo no Canal, parar num qualquer aeroporto e entender o Passageiro em Trânsito do Cristóvão de Aguiar, ler em voz alta a poesia do Fogo Oculto de Vasco Pereira da Costa, Viajar com as Sombras ou com o Tango nos Pátios do Sul de Eduardo Bettencourt Pinto, rever a Traceira de Jasus de Álamo Oliveira, revisitar as pedras arruinadas do Pastor das Casas Mortas de Daniel de Sá. A estes nomes aleatórios há muitos outros a acrescentar de autores açorianos que não só merecem ser lidos, como deveriam constar
Por isso escrevi
Que Dias de Melo era um operário, agricultor, pescador, escultor que trabalhava, ceifava, pescava e esculpia a palavra como um baleeiro, pescador, marinheiro, mestre de lancha da ilha do Pico. Escreveu como se da janela da sua “Cabana do Pai Tomás” no Alto da Rocha na Calheta de Nesquim, vigiasse os botes e as lanchas da Calheta, baleando contra os Vilas e os Ribeiras
Com os aborígenes australianos entendi como é possível preservar a língua e cultura mesmo sem haver escrita há 60 mil anos. Com os chineses apreciei o valor do futuro com base nos ensinamentos do passado, e com os timorenses, macaenses e outros aprendi saberes que fazem parte do meu quotidiano. É disso que os meus livros falam.
E continuo a citar alguns excertos:
Tivesse eu fôlego e iria ao mítico Pico da Atlântida submersa, cujo magnetismo me fascina ao ponto de desejar, vezes sem conta, mudar de armas e bagagens para este Triângulo Sagrado onde prometo fazer imolações e outros sacrifícios nas aras do destino. Não sendo das Bermudas este triângulo isósceles, que nunca escaleno obsceno, seria ótimo pousio final para as minhas cinzas quando chegar a estação de fazer como as cobras e trocar de pele. Despir a bela capa colorida terrena, de seis decénios, e vestir o cinzento das cinzas que seriam lançadas nesta lendária Atlântida de continentes submersos cujos picos vocês habitam.
Aqui, na Gruta das Torres senti-me um salteador da Arca perdida à sombra do Pico que, ora se esconde, ora se revela num jogo constante do gato e do rato, que entusiasma e arrebata. Sinto o sortilégio. O mágico cume tem um íman que atrai a visão e nos desconcentra, sempre insistindo para o contemplarmos nas suas mil e uma facetas alteradas a cada segundo.
Há cinco anos que não visitava a ilha mágica, o Pico magnético que me atrai e seduz. Um dos primeiros locais que quis visitar foi a casa de José Dias de Melo no Alto da Rocha do Canto da Baía. Aí perdi as palavras, as silvas retomaram posse de terrenos em tempos bem tratados e cuidados, a portinhola de madeira estralhaçada com as ripas no chão. As pedras soltas do caminho de acesso à casa, o abandono total à espera de uma decadência que a casa não merecia por mais pobre humilde que sejam as suas origens e as do seu habitante mais celebrado e ora esquecido.
Foi há apenas cinco dias que as palavras se me acabaram. Foram-se. Esgotadas. Caladas. Silentes como o breu da noite. Arrebatadas por alguma força alienígena que não entendo. Sempre disse que um povo que não respeita a sua história e os seus vultos acabará, mais cedo ou mais tarde, como povo e dele restará um punhado de notas para a História.
Tentei saber o porquê do abandono, falaram-me de disputas entre herdeiros e editores. Não quis saber então, e muito menos quero agora. Há desculpas que a gente não engole. Até podem ser reais ou legais ou mesmo morais mas nem por isso se tornam mais aceitáveis, palatáveis.
Um dos mais ricos patrimónios, ainda mal explorado, dos Açores é a sua riqueza literária. Há anos que venho pugnando e propondo a autarquias e entidades várias, a criação de roteiros culturais locais, para se celebrar a memória de autores e de suas obras, os seus passos terrenos, os locais onde nasceram e viveram, onde escreveram, onde sofreram e sonharam. Os passos que davam nas suas caminhadas diárias, as paisagens que os inspirava, os sons e os cheiros que rodeavam o seu meio-ambiente.
A contrastar a autarquia asfaltara o pequeno caminho de acesso, outrora irregular e em gravilha solta.
Este o aspeto degradado a que deixaram chegar a casa a contrastar com aquele que tinha em 2009, um ano após a sua morte.
Fiquei imensamente triste, pensei que ia encontrar a casa aberta ao público, como espaço museológico, com um guia habilitado, a falar-nos das suas lutas, da sua escrita e vim a encontrar estas imagens que me compungem.
Estas palavras que me abandonaram servem apenas para eu lançar um apelo pungente aos herdeiros do escritor para que honrem a sua memória e não deixem morrer a casa que bem serviria para contar as suas histórias de baleeiros. Há bens imateriais que se deviam sobrepor a quaisquer vantagens materiais desta propriedade a caminho da ruína.
Sei que a memória do homem e da sua obra podem ser dignificados e acredito que o serão, para preservar este cantinho de um autor que soube sempre honrar o Pico natal. É este Pico que amo e quero ver enaltecido, em vez de entregue às silvas e ervas daninhas que nunca quebraram nem amedrontaram o escritor dos baleeiros.
Da última vez que aqui estivera na ilha em 2011, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, ao andar rumo à casa do escritor Cristóvão de Aguiar deparei com uma camioneta de passageiros, estacionada, aguardando o início de nova semana de trabalho. Ali me ocorreu a ideia peregrina de como seria culturalmente interessante a aventura de “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos seus passageiros. Não se cobrariam bilhetes. Pararia em todos os locais, para que contassem histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos. Assim me despedi da ilha prometendo voltar com mais tempo.
Termino dizendo que a magia da vossa ilha, que se insinua como uma amante insaciada, mulher fatal capaz de marcar os destinos de todos os homens que têm a sorte de a encontrar, merece que a casa de José Dias de Melo seja mantida e aberta ao público em geral e aos fiéis como eu que ali peregrino sempre que vou ao Pico...