Manuel Igreja

Manuel Igreja

Quando e se eu um dia...

EUTANÁSIA. Eis uma das palavras que nos fazem estremecer de alto a baixo somente porque se ouve. Tem a ver com toda uma vida que se teve, mas essencialmente tem a ver com uma vida que se está prestes a deixar de se ter.

Ou antes, tem a ver com a maneira como a locomotiva que somos vai parar a viagem porque não existe mais linha para percorrer. Obviamente que não é uma situação geral, pois as circunstâncias do último apito não são iguais para todos. Cada qual é ele e mais as exclusivamente suas.

Certo, é que ninguém sabe como se vai, pois, ser humano algum está ciente do quando e de como se fina. Unicamente sabe que o exato instante do último sopro chegará. Só nos resta, pois, agirmos sabendo que a única coisa que de nós fica é a forma de vida que levamos.

Quanto maior for a dignidade no percurso feito, quanto mais praticada for a humildade, maior será a grandiosidade da memória que erguemos e que sem querer legaremos. Mais hora menos hora somada em anos, falará por nós o nosso retrato que alguém colocará numa estante numa sala.

O que fomos, o que fizemos, o que dissemos, o que calamos, ficará emoldurado por entre livros e bugigangas, ou dependurado no átrio de entrada das casas de quem nos reservou um pequeno canto no coração que sendo bom, é também do tamanho do mundo.

Memórias da liberdade que tivemos, e que construímos, das opções que fizemos e das ações que praticamos. Enquanto humanos somos livres na proporção exata em que somos valentes e inteiros. Por isso a liberdade é tão difícil de praticar e de se permitir. A nós e aos outros, mais próximos ou mais distantes se é que a distância existe nestas coisas.

Acho que não existe. Vivemos todos ao lado uns dos outros. Por isso temos de nos respeitar. Por isso devemos interferir o menos possível naquilo que está no fundo do poço de cada qual. Cada quintal deve ter limites intransponíveis por melhor que sejam as relações de vizinhança. A rega das nossas sementeiras interiores é sagrada e exclusiva.

Por isso defendo a possibilidade de optar, se um dia vier a ser colocado perante a opção das opções. Quero ser livre para escolher, para decidir sem amarras a plenitude da forma de morrer se vier a estar perante o fim da plenitude do viver. Quero poder escolher deixar de sofrer mais não seja para que sofram menos os que sentem a alma rasgada porque vou partir para lá do azul do céu. Se um dia me degradar ao ponto de me desagradar, quero decidir ainda que eventualmente desagradando a quem muito agrado e a quem ponho um amar sem limites.

Porque não me acho com o direito de impedir a suprema atitude de sentimento e de liberdade a quem quer que seja, e porque tenho para mim que tal coisa pode ser o que mais quer quem vive o terrível maior que existe, defendo o direito da Eutanásia enquanto decisão íntima, pessoal e intransmissível. Podem estilhaçar-se as almas no momento, mas serão serenadas quando habitarmos a substância do tempo nas esquinas dos sonhos que provocamos.

Quando e se eu um dia…, se vier a ter de ser, quero escolher. Posso nem ir por aí, não sei. Mas sei que não vou por ali, por onde outros achando que sabem tudo, pensam que sabem o que vai no meu pensamento e querem impedir o que eu posso ter de decidir quando se mirrar a flor da minha vida.

No entanto e no fundo, só desejo é que as pétalas caiam uma a uma, sem que eu me aperceba porque ainda que com espinhos, a verei sempre florida.


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