Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

Quem atira sobre a ambulância?

Os casos de justiça que, nas últimas semanas, e, em especial, na última semana, abalaram a opinião pública podem ser sintomas do que há de mais negativo e, ao mesmo tempo, de mais regenerador na sociedade portuguesa.
Há uma consciência geral de que as instituições em geral se degradaram. Os agentes dos órgãos de soberania não souberam, ou não puderam, credibilizar a sua função. As causas serão múltiplas. No plano objectivo, o progressivo declínio do Estado e a correspondente ascensão dos interesses privados provocou o aprofundamento da fractura social, acelerando a acumulação de algumas fortunas privadas num período em que o povo é obrigado a apertar o cinto. A crescente falta de esperança numa regeneração social é alimentada pelo desemprego, pela degradação do poder de compra, pelo ruir de uma ilusão de bem-estar cujas bases, damo-nos agora conta, eram falsas. De facto, durante alguns anos, a ratoeira do crédito fácil em substituição da justa repartição do rendimento através do salário conduziu ao endividamento generalizado que agora aprisiona as famílias e pequenas empresas nas obrigações por pagar, na incapacidade de se refinanciar e na impossibilidade de manter sequer um padrão de vida correto.

Ao mesmo tempo, a imagem que transpira dos corredores do poder é a do conluio de interesses, da negligência das autoridades reguladoras, do enriquecimento injustificado, do nepotismo nos cargos públicos, dum certo exibicionismo do sucesso e, frequentemente, da corrupção. Em resumo, a opinião pública tem a percepção de que o Estado está podre.

Os vistos dourados e a prisão do antigo primeiro-ministro e algumas pessoas próximas são apenas uma pedra lançada no charco. É necessário dizer, desde já, antes de avançar na análise, que se deve respeitar a presunção de inocência. Ninguém é culpado antes de ser julgado culpado. Mas lançar suspeitas veementes sobre o processo e sobre os magistrados não contribui para a serenidade que deve imperar na aplicação da justiça.

Também não podemos correr atrás dos fogachos, como o faz de modo geral a comunicação social. A urgência da notícia não justifica o espectáculo e as audiências não deveriam ser o critério orientador da comunicação. Mas os cidadãos devem aperceber-se de que a informação clara, limpa e objectiva não é deste tempo. A comunicação social é essencialmente propaganda, quer pelo seu posicionamento apriorístico, condicionado pela aceitação acrítica do liberalismo desenfreado, quer pela selecção diária das notícias e do seu tratamento.

No caso em foco, o da prisão de José Sócrates, há o fundo e há a forma, mas há também as reacções de algumas personalidades.

No fundo, a função da justiça penal é perseguir os criminosos e aplicar-lhes a lei. Não podemos passar o tempo a acusar a justiça de que só apanha o peixe miúdo e de que tem medo dos poderosos e, no momento seguinte, vir a estranhar que a mesma justiça investigue o crime de colarinho branco e use os meios de investigação e de protecção da investigação de modo igual para todos os cidadãos. Se o ministério público chegou a indícios sérios de existência de crimes, era sua obrigação promover a sua perseguição. Cabia ao juiz de instrução avaliar esses indícios e tomar as medidas que se impõem para proteger a investigação de interferências externas. A lei impõe-lhe o dever de ponderar todas as circunstâncias e de justificar as suas decisões. Parece que, até agora, nenhuma das manifestações de indignação conseguiu lançar a dúvida sobre a seriedade da investigação e a isenção do juiz. E se a palavra humilhação, que foi usada por várias personalidades e até pelo próprio arguido na sua carta ontem divulgada, corresponde ao facto de a prisão ter sido objecto de larga divulgação nas televisões, há que notar que o juiz de instrução não manda na comunicação social e não lhe dita a conduta, ou seja, a existir essa humilhação, é um facto exterior ao processo, como o são os comentários soezes que inundam as redes sociais.

As reacções à prisão do antigo primeiro-ministro vêm essencialmente dos meios políticos, como seria de esperar. E aqui cabe também alguma reflexão sobre a tendência geral e sobre algumas reacções mais particulares. Com algum pudor, eventualmente hipócrita, muitos políticos chamaram à separação das águas entre a justiça e a política. Fizeram o seu papel. Só no fundo das suas intenções se poderia ler o júbilo dos adversários e o instinto de defesa dos seus próximos. Por isso, devem assinalar se essas reacções, que dignificam a justiça e a política.

Como outras reacções que têm passado a ideia de que este caso degrada a imagem do país, a reacção do Dr. Mário Soares vai mais longe e é, no plano dos princípios, mais condenável: antes de mais, a justiça de um país europeu que cumpre o seu dever em relação aos poderosos não degrada a imagem do país, antes a dignifica, mostrando que o país é capaz de observar a separação dos poderes e a independência da justiça. Portugal terá aparecido internacionalmente como um país onde os detentores do poder são vulneráveis à corrupção e aos conluios de interesses, mas também como um país que mantém uma parte sã, capaz de reagir a esses crimes e conluios.

Entre as reacções mais emocionais, não pode deixar de mencionar se a do antigo Presidente da República, Dr. Mário Soares. Não sei se deva compreendê la como manifestação de uma longa amizade, de uma cumplicidade ideológica ou de prática política, ou mera reacção epidérmica contra o poder contrário instalado. Não quero invocar a desculpa da sua idade avançada, porquanto essa não o tem impedido de fazer intervenções certeiras e desempenhar o seu papel no Conselho de Estado. Prefiro antes realçar a visível emoção da sua intervenção neste caso e a insuficiência do tempo de análise que o levou a reagir no auge do fogo. Se humanamente compreensível, é, porém, uma intervenção grave no plano institucional.

A reacção do Dr. Mário Soares beliscou a dignidade da justiça, lançando a suspeita generalizada sobre os magistrados e polícias, negando ao Tribunal de Instrução Criminal a qualidade de jurisdição independente e proclamando uma teoria de maquinação política que não tem modo de sustentar ou sequer de indiciar. Mais prudentemente andou neste caso o próprio José Sócrates, na sua carta aberta, apelando a que o plano político não interfira no processo e afirmando que apenas recorrerá às armas do Estado de Direito.

No fundo, a reacção do Dr. Mário Soares pode ter subjacentes duas ideias, ambas deletérias para a dignidade da política e da justiça: ou ele entende que um responsável político de topo deve ser tratado pela justiça de um modo diferente do de um cidadão comum – e nesse caso, estaremos perante um simples reflexo de elitismo subjacente a certa ideia da política, ou entende que a acção política confere aos seus titulares uma isenção de responsabilidade que os coloca fora do alcance da justiça, e isso é uma negação inadmissível do Estado de Direito e da separação dos poderes.

Aos cidadãos, à cautela, interessa que se faça justiça, igual para todos, miseráveis ou poderosos, com a necessária serenidade.


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