Chrys Chrystello

Chrys Chrystello

Relembrando Bragança

DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MON­TES

 

Cristóvão de Aguiar

 

Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cul­tura portu­guesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnó­grafo, arqueó­logo, autor das Memó­rias Arqueológico-Histó­ricas do Dis­trito de Bra­gança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Dis­trito de Bragança… E João Araújo Cor­reia, médico João Semana, no genuíno sentido da expressão, na cidade da Régua, e um dos grandes Mestres da Língua Por­tu­guesa, que mere­ceu de Aquilino, outro seu ilustre cul­tor, estas expressivas e legítimas pala­vras: «Mestre de nós todos há cin­quenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, glo­riosos ou inglorio­sos, pouco importa; mestre dos que vieram no inter­mezzo da arte literária com três dimensões para a arte lite­rá­ria sem gramática, sem sin­taxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insusten­tá­vel e quei­ram construir obra séria e dura­doura».

João de Araújo Correia, duriense de raiz enxerida no coração, escreveu estas sábias palavras acerca do povo de que fazia parte: «O Holandês subtraiu ao mar a terra que o sustenta; o duriense arrancou-a palmo a palmo a uma natureza tão brava como o mar.» Assim o fez também o escritor de Folhas de Xisto, que sobre o próprio livro escreveu: «Parece-me que foi sobre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos.»

Isto só para mencionar os que já se foram, porque outros há ainda, vivos, e com obra de vulto ainda construção, que mere­ciam alguma justiça que a macroce­falia lisboeta lhes nega, sem­pre negou a todos quantos estão longe do seu bafo literário quantas vezes podrido…

 

Sem desprimor para estes dois vultos transmontanos e que de per si mereciam uma confe­rên­cia inteira ou mais, só irei debru­çar-me, e espero não me despe­nhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personali­dade de outras duas indivi­dualida­des graníticas, mais che­ga­das à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi gran­des lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quin­tela, filho desta cidade, onde nas­ceu em 1905, e Miguel Torga, natu­ral de São Marti­nho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tan­tas vezes escre­veu nos seus livros…

 

Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melho­res tra­dutores das línguas germânicas para a Língua Por­tuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que naciona­lizou esses poetas e escrito­res estrangeiros, prin­ci­palmente ale­mães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzche, Haupt­mann, Nelly Sachs, Georg Trakl, Nietzche, incluindo alguns poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico ale­mão, lusita­nista, estu­dioso e tra­dutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobre­tudo Rilke, que influenciaram alguns poe­tas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bas­tasse, Paulo Quintela, um apaixo­nado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de res­sus­citar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos com­pêndios. Excetuavam-se algu­mas tími­das, fugazes e nem sempre logra­das ten­tati­vas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, repre­sentado por essa compa­nhia, em uma noite de verão, no Pátio da Uni­versi­dade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em cima do palco. Escre­veu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro por­tuguês, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelha­nas, de Gil Vicente, publi­cadas em livro, em mea­dos dos anos ses­senta, no Cancio­neiro Vér­tice. Porém, Quintela não se que­dou por Gil Vicente: encenou outros gran­des drama­turgos; os trá­gicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antí­gona, de Sófo­cles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cris­tó­bal e A Sapa­teira Prodigiosa, de Frederico Gar­cía Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quin­tela quem represen­tou o papel de sapa­teiro, o principal, porque o ator que o devia interpre­tar ter comu­ni­cado, na véspera da estreia, que não podia com­pare­cer – valia Quin­tela saber de cor todos os papéis das peças que encenava; O Tar­tufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâ­neos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Bran­dão… Graças ao TEUC (Tea­tro dos Estudantes da Uni­versi­dade de Coim­bra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possí­vel a Paulo Quintela, seu diretor artís­tico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os drama­turgos atrás referi­dos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde pas­saram gerações e gerações de estudantes, que, após a forma­tura, conti­nuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.

 

Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em dezem­bro de 1905, Paulo Manuel Pires, mais tarde Quintela, oitavo rebento de uma prole de dez, descendente de um pedreiro e de uma padeira. Aqui se criou, iniciou e con­cluiu os estudos elemen­tares e liceais, que o haviam de guindar à Facul­dade de Letras da Universi­dade de Coimbra, na qual se matri­culou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno bri­lhante, con­cluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensi­nar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de qua­renta anos, o magis­té­rio nas Literatu­ras e Cul­turas Ger­mâ­nicas. Aqui jaz, no cemitério do «Alto do Sapato», desde o dia 10 de março de 1987.

 

Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Lite­ratura Portu­guesa e, durante grande parte do per­curso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventu­ras literárias. Procu­rarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois o que os separou para sempre, tentando o mila­gre, sempre pos­sível, de um rea­tamento de relações post mortem

 

Entre ambos existia uma ami­zade enrai­zada num ace­rado amor que con­sagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravi­lhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fra­terno abraço a afir­mar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a ilumi­nar a paisa­gem de paz onde esse abraço se deu, forte e repou­sado. Que belo e natu­ral é ter um amigo!» ─ escre­veu Torga, no dia 4 de feve­reiro de 1935, no pri­meiro volume do Diá­rio, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hos­pital em Coimbra.

 

No Segundo Con­gresso Trans­mon­tano, reali­zado nas Pedras Salgadas, em setem­bro de 1941, ambos parti­ci­param com duas confe­rências. A de Miguel Torga intitulava-se »Um Reino Mara­vilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quin­tela, «Um Poeta de Trás-os-Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se pri­meiro um mar de pedras. Vagas e vagas sidera­das, hir­tas e hos­tis, conti­das na sua força des­me­dida pela mão inexorá­vel dum Deus cria­dor e dominador. Tudo parado e mudo. Ape­nas se move e se faz ouvir o cora­ção no peito, inquieto, a anun­ciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desem­ba­inhada: ‘─ Para cá do Marão, man­dam o que cá estão!’ Sente-se um cala­frio. A vista alarga-se de ânsia e de assom­bro. Que penedo falou? Que terror res­peitoso se apo­dera de nós? Mas de nada vale interro­gar o grande oceano megalí­tico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Mara­vilhoso.»  

 

Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impune­mente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisa­gem, se não é o único fator determi­nante, é con­tudo primor­dial ele­mento de forma­ção e informação. Se a poe­sia é no fundo expres­são ─ expres­são mágica ─ das coi­sas e dos seres, da Vida, é evi­dente que essa expres­são há de ser em certa medida condi­cio­nada pela maneira como esses seres e coi­sas se nos reve­lam e nos soli­ci­tam, pela luz que os banha, pelo hori­zonte em que estão implanta­dos, pelo ângulo por que se con­tem­plam. O homem da planí­cie terá uma vivência das coi­sas e dos homens muito diversa da do monta­nhês. Horizontes vas­tos e planos, monó­tonos, em que as figuras se per­dem ou ficam reduzi­das a con­tor­nos impreci­sos, convi­dam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui ─ falo, evi­dente­mente, em termos amplos que admi­tem toda a sorte de exceção que não aba­lará aliás a fir­meza do prin­cípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes pare­cer exceção...) ─ daqui, digo, a pro­pen­são contem­plativa e a necessi­dade de fuga e liberta­ção mís­tica do homem nado e criado em ambiente des­tes. Daqui o caráter mís­tico da grande litera­tura da estepe russa, por exem­plo. Mas suba­mos agora uma monta­nha. As coisas na encosta que vamos esca­lando são-nos mais chega­das, mais íntimas, mais nos­sas, pelo esforço que puse­mos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra maneira nas lom­bas que nos rodeiam e nos limi­tam o hori­zonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arca­boiço arfa, bate o cora­ção encos­tado à fraga ou à árvore, e o arque­jar do peito e a pan­cada do cora­ção do homem da mon­tanha faz-se hálito e pul­sar da pró­pria terra-mãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para con­tem­plar o céu que nos apro­ximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos con­vida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tenta­ção: ‘De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mos­trou todos os Rei­nos do Mundo, e a gló­ria deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se pros­trado me adora­res...’ Deus em Cristo resis­tiu à tenta­ção. Os homens sucumbem à vee­mên­cia do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poe­tas portu­gueses moder­nos, o que está mais in­ti­ma­mente ligado à sua paisagem, que é a pai­sa­gem de Trás-os-Montes.»

 

 Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poé­tica, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, inti­tu­lada «Abe­cedá­rio de Coimbra», o poeta de abril, grande amigo e admi­rador de ambos, em­preende uma apolí­nea pere­gri­nação afetiva através de individua­lidades que, em dado mo­mento histó­rico-cultu­ral, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Porta­gem»; o outro intitulado «Paulo Quin­tela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo reza assim:

 

Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consul­tório e embarca para / dentro. / Diante da folha branca vai de via­gem / navega sobre o tempo e nunca para. / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.

 

Sobre Quintela escreve:

 

Nada sabía­mos da lín­gua por­tuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensi­nou-nos / a música secreta das vogais / a cor das con­soan­tes a ondula­ção o ritmo / o maru­lhar das frases e o seu / sabor a sal. / E tam­bém como pisar um palco / como falar como calar e sobre­tudo/ como sair de cena e entrar / no grande tea­tro deste / mundo. / Por­que tudo era proi­bido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colo­car a voz e a não per­der / a alma.

 

Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão lumi­nosa fun­dura a que só os príncipes da poesia têm o con­dão de des­cer ou de subir, encon­tra-se deli­neado um ver­dadeiro, muito completo e com­plexo pro­grama de vida esté­tica, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quin­tela como Miguel Torga foram cum­prindo enquanto por cá andaram. Nas face­tas que no poema se real­çam, tornou-se Quintela grande mes­tre e a sua obra de inte­lec­tual e o seu exem­plo de cida­dão empenhado deram disso tes­temu­nho. A poe­sia e a prosa de auto­res de «franças e aragan­ças», que, através de tradu­ções exemplares e re­cria­do­ras, natu­rali­zou sem qualquer sotaque para portu­guês e que fica­ram desde logo per­tença da Literatura Portu­guesa; se tives­sem os seus auto­res cá nas­cido, seria decerto como ele as traduziu que escre­ve­riam na nossa lín­gua; o tea­tro vicentino que estu­dou e amou como nin­guém desde os ban­cos do Liceu de Bra­gança, difun­diu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cida­dão livre que sem­pre ousou ser, numa pátria contami­nada por gran­des medos miudinhos por tan­tas outras toxinas que lhe cons­purca­ram a atmos­fera, não raro tor­nando-se, armada ou arma­di­lhada de um pesa­dume propenso e pro­pí­cio a que certas criatu­ras se ban­deas­sem, fra­quejas­sem e se per­des­sem, alma incluída, no céu da sua con­ver­são…

 

No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certei­ras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosa­mente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultó­rio, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado tra­balho poético, em sua casa, zar­pava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o poema de abertura do 1.º Diário, de 3 de janeiro de 1932, (Torga ini­ciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse tra­balho noturno, noctí­vago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:

 

 Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açu­cenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.   

 

Vale também a pena transcre­ver um texto do Diário XII, de fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:

 

Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremu­nhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começa­ram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acu­diu à inspira­ção tumultuosa, britou, peneirou, lavou, orde­nou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmo­nioso e autó­nomo. Um texto na sua plenitude existencial, inex­pug­nável como um dia de sol. Excitado pela evidência do mila­gre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segu­rança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rija­mente, e a con­cluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exal­tação secreta, estra­nhamente otimista, menos vulnerável aos empur­rões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encon­trasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diá­rio XII)

 

Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro portu­guês que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC represen­tava Terra Firme no ve­lho Teatro Ave­nida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressa­mente Quintela para ence­nar uma peça de Miguel Torga, repre­sentava o poema dramá­tico O Mar, inte­grado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os desti­nos des­tes dois homens alti­vos, como duas ver­ten­tes de um Marão de carne e osso, sepa­ram-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslin­dar as razões por que se deu tal rutura, nem tal­vez as hou­vesse bem defini­das. Seriam for­tes razões do cora­ção, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutua­mente, e outra coisa não seria de espe­rar de homens de tama­nha en­ver­gadura. Eu próprio posso disso dar testemu­nho. Paulo Quin­tela conti­nua no seu labor de tra­du­zir auto­res alemães, ingle­ses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Haupt­mann, Nietzs­che, Goe­the, Kant, Ben John­son, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, ence­nando Gil Vi­cente, Molière, auto­res gre­gos, como Eurípedes e Sófo­cles, e modernos como Gar­cia Lorca e José Régio. Mi­guel Torga havia ainda de publi­car dois livros de poe­sia, Câmara Ardente e Poemas Ibéri­cos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diá­rio.

 

Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de março de 1987. Na véspera, domingo à noite, esti­vera a ver um pro­grama tele­vi­sivo in­ti­tulado Eu, Miguel Torga, docu­men­tário sobre o autor da Cria­ção do Mundo. Aca­bado o pro­grama, foi-se dei­tar e não mais acordou. Pre­mo­nitó­rio, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira ante­rior, e havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diá­rio XIV, aca­bado de sair e do qual lhe falara com entu­siasmo durante a nossa última con­versa de sexta-feira, 6 de março. À despe­dida, no alto da escada, ainda me recomendou: «Não te esque­ças de me trazer o diário do Torga...»

Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de janeiro de 1995, e sepultado no dia seguinte, em capa rasa, na sua aldeia natal, já transmudada em lugar para onde! No ano seguinte, o Negrilho, árvore centenária que dominava o Largo do Eirô, a quem Torga, num poema de 1954, dizia: Na terra onde nasci há um só poeta. / Os meus versos são folhas dos seus ramos. […], deu em esmorecer e expirou semanas mais tarde. Talvez de desgosto, talvez de saudade do compa­nheiro que: Quando chego conversamos, /E é ele que me revela o mundo visitado [...]. Agora, no Largo do Eirô, transformou-se o mestre da inquietação serena num fantasma enlaçado de hera… 

No seu penúl­timo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de março de 1987, dia da morte de Paulo Quin­tela: «A morte é uma grande re­conciliadora. Não há desa­vença que lhe resista. O seu grande manto de equanimi­dade cobre todas as pai­xões da mesma vani­dade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediá­vel.» (No dia de sua morte foi enviada uma coroa de flores provinda da casa de Miguel Torga, a dois passos da de Quintela).

 

Depois de tudo quanto aqui ficou lavrado, fico com a sensação de vazio abso­luto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para se acolherem nas pági­nas de um qual­quer escrito, e eu demasiado pequeno para os fa­zer caber numa sim­ples e des­pre­ten­siosa comunica­ção como esta com que vos tenho vindo a martelar o bicho do ouvido e da paciência. Re­pare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínte­ses fulgurantes: ambos ficaram retra­ta­dos, em corpo e alma inteiros, nos dois poemas de Manuel Ale­gre. São assim os Poetas, os grandes Vates da Humanidade.

 

Cristóvão de Aguiar

 

Bragança, 1 de outubro de 2009

 


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