Batista Jerónimo
SNS e a “dedicação exclusiva”
O Sistema Nacional de Saúde é apontado por muitos como o melhor sistema de saúde do mundo, mas mesmo que seja só um dos melhores, tudo deve ser feito para o preservar. As reformas a adoptar não devem prejudicar a produtividade, mas antes melhorá-la.
Em Portugal a palavra de ordem é reformar. Assim, em abstracto, não é nada, os partidos mostram preocupação sem dar achegas para o que é necessário reformar, pouco ou nada se concretiza em propostas objectivas.
O SNS foi criado a 29/07/1978 e a 4/09/2019 foi implementado o modelo actual de gestão autónoma para hospitais e Unidades Locais de Saúde.
Entretanto, por oportunidade de negócio e ideologia política dos partidos que nos têm governado, assistimos ao aparecimento do sector privado a investir na saúde, inclusive empresários estrangeiros.
Esta convivência dos serviços de saúde entre público e privado, tem aportado alguns constrangimentos ao SNS. É nesta partilha que coexistem os profissionais de saúde. Em boa verdade, o sector privado só aparece e cresce desmesuradamente nos últimos anos, porque o SNS não consegue dar resposta às solicitações. Claro que chegamos aqui, porque não se tem investido nas várias dimensões, físicas e humanas. Ou seja, o privado alimenta-se da ineficiência do público, sendo este o seu melhor cliente.
Esta “promiscuidade” público/privado estende-se aos profissionais de saúde (médicos, técnicos e enfermeiros). Estes são na generalidade funcionários do quadro do SNS (70% a 90%) e remunerados à tarefa no privado. Nesta situação, pode-se colocar em dúvida a falta de ética, de deontologia, de honestidade e o conflito de interesses de instituições e profissionais? Ouve-se com frequência que os profissionais só o fazem porque a retribuição no SNS é insuficiente, não lhes sendo reconhecido o seu esforço na aquisição de competências. E se, por absurdo, um advogado fizesse horas em vários escritórios de advocacia que, tal como os profissionais de saúde, os clientes fossem os mesmos? Ou ainda, se numa empresa com grande investimento tecnológico, os funcionários trabalhassem para a concorrência em complemento e, após algum tempo, uma concorrente estivesse a utilizar o mesmo conhecimento? Seria considerado espionagem industrial?
Os profissionais de saúde do SNS provaram que também eles são do melhor que há no mundo. Será que a sua retribuição condiz com a sua qualidade? Poder-se-á exigir-lhes a “dedicação exclusiva” ao SNS?
No entanto, ainda subsiste a questão do investimento do Estado nestes profissionais, seria de levar em conta, que depois de adquirir a formação completa, e antes de ingressarem em regime exclusivo no privado, ficassem um número de anos no público, como forma de ressarcir o estado do investimento na sua formação?
Sobre a exclusividade dos profissionais de saúde vários factores há que ter em conta: se o número de profissionais de saúde dá para assegurar o público e o privado, como até aqui; se o excesso de horas não retira concentração, fundamental nestes profissionais; se o SNS está em condições de proporcionar a remuneração compatível com o investimento na formação; se seria benéfico para os utentes;
Entra ainda nesta equação o corporativismo da Ordem dos Médicos com um poder de influenciar a saúde pública para além do desejável, também porque alguns dos ex-bastonários encontram abrigo em administrações de instituições privadas ligadas à saúde. Não seria aqui também recomendado um período de “nojo”? Ainda a Ordem dos Enfermeiros com bastante poder reivindicativo junto, e só, dos funcionários do SNS (igualmente para os outros profissionais de saúde). Acresce o poder económico das farmácias que apadrinham, algumas decisões importantes de saúde pública, é de ter em atenção que são o grande financiador do SNS, em consequência, fica condicionado o poder negocial nas compras. Ficando para último talvez os mais poderosos, as companhias de seguros, em que os seguros de saúde são quem lhes liberta mais recursos e os seus lucros aumentam na razão inversa da resposta positiva do SNS. O SNS mexe com muitos e poderosos interesses instalados.
Casos caricatos são relatados com frequência como o das ULS´s recorrerem a empresas de outsourcing para a contratação de médicos para trabalho eventual. As ULS´s pagam a estas empresas mais de 40€, estas pagam aos seus contratados (muitas vezes funcionários do SNS) 26€ e o clínico que pertence à ULS´s em causa, pelo mesmo trabalho, recebe 13€ à hora.
Outro caso é o trabalho precário no SNS, trabalhadores ao abrigo de programas CEI e CEI+ é uma constante, como não é entendível que o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social assuma esta responsabilidade e não seja o Ministério da Saúde.
Ainda é recorrente relatos de que quando na terapia a um paciente, este fica em estado critico, é encaminhado para o SNS, por razões óbvias – previsão de gastos, reconhecimento das melhores condições do SNS e manutenção do bom nome.
O Ministério da Saúde foi o que mais recursos humanos e financeiros despendeu no período de pandemia, logo é compreensível que esta Ministra, a quem é reconhecida competência e poder de decisão, não tivesse tido tempo para arrumar a casa. É tempo de introduzir melhorias no funcionamento, desde as retribuições, à valorização e progressão da carreira de todos os profissionais, ao investimento indispensável em equipamentos de exames complementares de diagnóstico e terapêutica, em edifícios e tornar o SNS independente das várias influências que só lhe criam constrangimentos.
Bragança, 28/10/21