Luis Guerra
Superando os limites das crenças
No seu aclamado livro, “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, o escritor israelita Yuval Noah Harari destaca, além do mais, a função das crenças e das ficções (isto é, das imagens ou representações mentais) como sustentáculo dos sistemas sociais, económicos e políticos, bem como o seu poder para os moldar.
Ainda a este propósito, na sua obra “Humanizar a Terra”, o pensador argentino Silo refere-se à estranha lógica das crenças, as quais são capazes de mobilizar um comportamento similar a respeito de um objeto e do seu oposto. E este autor afirma ainda: “Há de estar na essência do que crês a chave do que fazes. Tão poderoso é o fascínio do que crês que afirmas a sua realidade, mesmo que ela só exista na tua cabeça”.
Uma das crenças mais arraigadas em muitas culturas humanas, nomeadamente na europeia, é a da guerra como meio de resolução de conflitos. É uma crença claramente destrutiva, mas que surge ligada a imagens de grandeza e glória que a tendem a reforçar. Além disso, de um ponto de vista mais sociológico, enaltece-se o papel da guerra como transformadora das sociedades e aceleradora da História. E há quem ainda destaque a sua função purificadora para possibilitar um novo recomeço da humanidade.
Aqueles que assim pensam, fazem eco, talvez sem o saber, de mitos apocalípticos muito antigos, adormecidos na memória coletiva, que ocultam o terrível custo da guerra, em mortes, sofrimento e destruição. Assim, para que essas narrativas sejam moralmente aceitáveis, torna-se necessário desumanizar o suposto inimigo, atribuindo-lhe intenções maléficas, insanidade mental ou uma natureza inumana.
E, se repararmos, na retórica belicista de ambas as partes na guerra da Ucrânia há exemplos claros desta tendência desumanizadora do oponente para poder justificar ações violentas contra o mesmo e adiar a paz, independentemente das razões de cada um.
Na prática, subjaz a esta conceção o desejo de poder eliminar todos aqueles que se opõem aos próprios interesses, ao invés de aprender a persuadir e a reconciliar, como é próprio de uma relação entre pares.
Por isso, não se pode deixar de secundar o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, quando disse, recentemente em visita à Ucrânia, que “o pior crime de guerra é a própria guerra”. De facto, soltar as forças da guerra potencia as piores manifestações de crueldade humana.
Ainda assim, a ideia da possibilidade de um recomeço, neste ou noutro momento histórico, tem raízes profundas, na medida em que corresponde a uma necessidade de superar as contradições e o sofrimento acumulados no processo individual e/ou social, bem como a uma aspiração de reencontrar o propósito evolutivo. E isso também ajuda a explicar a adesão a essa crença. Contudo, a guerra como via para produzir esse reinício é uma tradução claramente equivocada de tal impulso interno, já que a mesma tem sobretudo uma função catártica das tensões acumuladas, sem as resolver, e acrescenta contradição e ressentimento a um processo esgotado, estabelecendo bases violentas para o futuro.
Não é, pois, um bom caminho nem um bom exemplo para ninguém, apesar da retórica dos vencedores.
Contíguo à crença na guerra, também o nacionalismo, enquanto crença nos atributos de uma nação, tem jogado um papel importante neste conflito. É perfeitamente compreensível que as pessoas gostem do país onde nasceram, cresceram e vivem e onde se encontram os seus entes queridos, bem como dos seus costumes, língua e valores, mas na medida em que esse sentimento resvala para uma ideia de superioridade ou de exclusividade, alguma coisa se perde ou se desvia internamente, tomando uma direção contraditória.
Por isso, “a politologia moderna distingue o nacional – que reflete os interesses legítimos de cada nação sem detrimento das outras nações – do nacionalista – que encobre com o manto nacional os interesses e pretensões egoístas das camadas opressoras e provoca conflitos com outras nações. Neste último caso, o nacionalismo transforma-se em chauvinismo, avassalando os direitos de outras nações e minorias nacionais oprimidas” (cfr. Silo. “Dicionário do Novo Humanismo”).
Ora, não se pode perder de vista que os Estados nacionais são, também eles, construções históricas assentes num substrato de crenças e ficções, ainda que as mesmas sejam vividas como verdades absolutas, e que, nessa medida, são realidades temporárias.
Aliás, noutro tempo, prévio à formação dos modernos Estados nacionais, a ligação das pessoas era sobretudo com a terra e não era tão relevante quem as governava, visto que, em termos de condições de vida da grande maioria do povo, pouco mudava além do suserano a quem se tinha que prestar vassalagem e tributo.
Assim, por exemplo, em Mértola, escavações arqueológicas realizadas no cemitério local, em conjugação com testes ao ADN dos diversos cadáveres encontrados em sucessivas camadas de sepulturas, permitiram concluir que a grande maioria da população se manteve na mesma localidade, adaptando-se à nova circunstância, apesar do governo local ter passado das mãos de governantes cristãos para governantes muçulmanos e outra vez cristãos, ao longo da Idade Média, desmentindo a narrativa da invasão e da reconquista do território, para além da disputa pelo poder político, económico e religioso.
Deste modo, percebe-se que as razões nacionalistas de parte a parte para sustentar o conflito armado são, na verdade, jogos de poder, que vitimam os povos de um e outro lado da fronteira e, por tabela, todos os povos do mundo, como já está a acontecer, mas que não servem a causa da paz e da democracia.
Por isso, é necessário começar por rejeitar o discurso fatalista que impõe a continuação do esforço de guerra e a escalada armamentista como única solução para a situação atual e que mascara o conflito em curso como um recontro entre as democracias e o autoritarismo, porque essa posição está a aproveitar-se do medo legítimo dos cidadãos europeus para construir novos “muros” no mundo, que servem uma estratégia de dominação e podem comprometer o futuro comum.
Neste momento, a prioridade devia ser apoiar todas as iniciativas de paz que levem as partes a negociar o fim das hostilidades, colocando o ser humano como valor e preocupação central, acima da nação, do Estado, da cultura e de quaisquer outros valores que criem as condições para o sacrifício do mesmo, e passando a discutir o futuro inclusivo que queremos construir, sem alimentar essa ficção de que se pode “riscar do mapa” quem se atravessa no caminho de cada um.
E Portugal devia estar na linha da frente desse esforço, fiel à sua melhor vocação contemporânea de construir pontes entre os povos e as pessoas, em vez de alinhar nessa ideia de que a guerra se pode e deve ganhar no campo de batalha, que a experiência colonial já nos mostrou ser infundada.
Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas